quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Cheiro de goiaba.

Fonte: Internet

Já viajavam há umas três horas e segundo o tio ainda faltava ao menos uma hora de estrada. Claudia adorava passear com seus tios, principalmente tia Rosa. Ás vezes, mas só às vezes, ela desejava que essa tia fosse sua mãe. Havia uma relação de cumplicidade entre as duas. Contava para a tia coisas que não contaria a ninguém.
-“Nossa era mais longe do que eu me lembrava! Será que Estela estará lá?” Estela era uma menina na faixa dos doze ou treze anos como ela, e também podia chamar tia Rosa de tia. Era ‘sobrinha de sangue’ como ela mesma fazia questão de enfatizar. –“Droga!” Pensou torcendo o bico. Neste fim de semana Claudia planejava ter a tia só para ela.
Estava completamente distraída quando seus pensamentos foram interrompidos por um grito ardido. Ao seu lado no banco de trás do carro viajavam seus dois primos menores. As duas crianças já demonstravam cansaço pelo longo tempo de viagem irritando-se mutuamente. Em sinal de protesto, o bebê havia se agarrado com vontade a cabeleira crespa do irmão irritante. O pequeno que não tinha mais que um aninho seguia atado à cadeirinha e se contorcia a um bom tempo tentando sem sucesso, livrar-se das investidas do irmão maior.
Apesar de toda sua força e ira o pequeno não conseguiu mais do que deflagrar belas risadas o que ele entendeu como sinal de aprovação. A partir de então arrancar cabelos seria seu novo e maior propósito, não importando quem fosse o dono da peruca escolhida. Com o tempo e infelizmente com treino constante, o pequeno viria a se tornar um grande escalpelador. Claudia ainda não sabia que se tornaria uma de suas vítimas prediletas.
Estavam quase chegando. A cidade apesar de pequena era bonita e próspera. Não havia edifícios como em São Paulo e também não se parecia em nada com a cidadezinha onde morava sua avó paterna. Lá, ainda existiam sítios e chácaras, charretes e vendinhas de uma porta só com engraçados estacionamentos para cavalos. Lá, as pessoas pareciam estar sempre dentro de uma pintura, movendo-se e falando em câmera lenta.
-“Qualquer cidade é uma metrópole se comparada a Juquiá!” Analisou observando as casas e as ruas distribuídas geometricamente em quarteirões: - “Por que será que em São Paulo os quarteirões não eram quadrados, mas triangulares, ovais e disformes?”
Concluiu que em São Paulo era realmente fácil se perder. Lembrou-se do pai que adorava ‘pegar um atalho’ e quase sempre a tentativa acabava em confusão. Eles ficavam perdidos andando em círculos ao som dos resmungos da mãe.
Neste momento, o tio estacionava em frente à casa da mãe de tia Rosa e anunciou a chegada com o dedo enfiado na buzina. Foram recebidos pela família com beijos, abraços e sorrisos.
Percebendo a presença de Claudia D. Clotilde, mãe de tia Rosa disparou: -“Ah! Que bom! Vocês trouxeram a Claudinha! Nossa menina você está comprida!” e cochichou em seu ouvido, provavelmente não tão baixo como ela imaginou: -“Já ficou mocinha? -” Não!” Respondeu Claudia corando e rezando para que ninguém mais tivesse ouvido. – “Que coisa mais chata! Parece minha mãe!”Claudia queria um buraco para se esconder. - “O que acontece com as pessoas depois que elas ficam velhas? Pensou enquanto Estela que ria da situação constrangedora lhe puxava pelo braço.
– “Vem vamos lá pros fundos.” Claudia ficou feliz por sair daquela situação. Bem, talvez Estela merecesse ser recompensada com um pouquinho de tia. Mas só um pouquinho...
Estela era o que Claudia considerava uma menina bonita, cheia de si e que agia de um jeito firme, o que com certeza a deixava mais bonita ainda. Claudia correu atrás da menina que seguia balançando longos cabelos loiros. Fugiram correndo dos adultos que não sabem ficar calados.
Ainda no corredor Claudia avistou o quintal. Estava como ela se lembrava. A casa era simples, muito simples, mas agradável e aconchegante.
Havia um pequeno gramado cercado por muitas flores, algumas ela conhecia: Margaridas, Rosas, Cravos e um canteiro grande de Onze horas se derramando por sobre a grama. As Onze horas eram suas preferidas. Claudia não entendia o que fazia essas pequenas florzinhas abrirem perto da metade do dia. Mas acontecia, e por incrível que pareça, elas não erravam nunca. Parecia mágica.
As flores, rosa bem forte, eram lindas e pareciam estar em festa.  -“Quando voltar peço a mamãe para plantar Onze horas no nosso jardim, talvez D. Clotilde não se incomode em dar uma mudinha.”
No quintal havia ainda várias árvores frutíferas que a tia da outra vez fez questão de mostrar e dizer o nome delas, Claudia não se lembrava de todas, mas algumas ela sabia sim até porque, também tinha pomar na casa de sua avó em Juquiá.
Pé de ameixa, abacateiro, figo, mangueira, jabuticabeira... -“Que pena que não tem jabuticaba!” Pensou Claudia procurando aquelas bolinhas pretas e doces pelo tronco da árvore. –“Ah! que bom! A goiabeira tá carregadinha! – “Será que vão achar que eu estou muito grande para subir no pé?  Agora tá um tal de dizer: -Você tá grande pra isso, tá grande prá aquilo. E tem um monte de coisas que eu quero e me dizem: - “Você ainda não tem tamanho pra isso não menina! Você ainda precisa comer muito feijão antes de pensar que já pode usar esse tipo de roupa, falar desse jeito, ler esse livro, assistir esse filme”...
Será que demora muito pras coisas ficarem mais claras ou os adultos se acertarem com o que pode e não pode? Claudia percebia que os limites variavam de família para família e até mesmo entre o pai e a mãe. Naquele momento o que ela queria mesmo, era saber se podia subir no pé de goiaba e comer a vontade sem que ninguém viesse brigar com ela. De mais a mais chatear sua tia não estava nos seus planos.
Claudia virou-se para Estela e disparou: -“O pé de goiaba tá carregadinho será que sua avó acharia ruim se agente subisse nele? A resposta de Estela foi no mínimo inesperada: - “Ai não... Eu não quero subir não, isso é coisa de criança!  
Estela estava mesmo com um ar diferente demonstrando deliberadamente que já era mocinha e que subir em árvores não estava em seus planos. Lançou um olhar de reprovação, quase de desprezo sobre Claudia como se a pequena diferença de idade entre as duas, Claudia era mais velha, tornasse o ato de subir em árvores o mais completo absurdo.
Claudia irritou-se– “Subir em árvore é gostoso e meu pai ainda sobe tá?” Alfinetou. “Quem disse que subir em árvore é coisa de criança? Ihhh! Que será que deu nela? Bem que eu sabia. Essa menina é uma chata mesmo, não mudou nada! Quem ela pensa que é?”
Tia Rosa da varanda anunciou o almoço e sugeriu que Claudia, Estela e os primos almoçassem juntos na mesa da varanda.  Durante o almoço Estela mantendo ares de adulta olhava fixamente para Claudia. Confessou que tinha um segredo para contar e pediu a ela que jurasse não contar a ninguém. E foi enfática–“Jure pela alma da sua mãe mortinha! Proferiu Estela. – “Tá bom eu juro.” Disse Claudia, e jurou porque achou que se não jurasse a menina não contaria e ela já estava curiosa demais.
Findo o almoço sentaram-se na frente da casa para conversar, realmente Estela estava cheia de histórias e todas repletas de façanhas com meninos...  –“Ai meu Deus que doida! Se a mãe dela descobre! Será que ela não tem medo?” Claudia descobria com desconforto e inveja que Estela possuía a coragem e a ousadia que ela com certeza não tinha.
Andava de namorico com os meninos de sua escola e, segundo ela, já havia beijado. – “Meus Deus e a mãe dela nem sonha! Será que era verdade?” Todas as meninas de sua idade sonhavam com o primeiro beijo e com Claudia não era diferente! -“Essa menina sempre foi metida e agora deve tá inventando só pra me impressionar”.
Claudia era uma menina simples e tímida também. Não se sentia nada a vontade na frente dos meninos, era insegura e se achava feia. Acreditava lá em seu íntimo que morreria solteira porque nenhum menino nunca se interessaria por ela. E já que era assim os observava a distância. De preferência uma longa distância.
Estela apesar de mais nova era mais esperta, menos superprotegida e já havia percebido que suas proezas estavam causando um forte impacto em Claudia que ouvia os detalhes com cara de espanto e interesse.
Claudia segurava nas mãos um anelzinho que Estela jurava ter ganhado do namoradinho da escola quando foram surpreendidas pelo quicar de uma bola dentro do quintal. Quicou e foi parar juntinho dos pés de Claudia que nem sequer se mexeu enquanto a bola parava ao seu lado.
Correndo atrás da bola surgiu um menino de mais ou menos quatorze anos. Estava suado da correria de um jogo que pelos gritos que podiam ouvir de onde elas estavam era bastante disputado. Para Claudia a presença inesperada daquele menino foi desconcertante, já que meninos eram o tema da conversa. Sentiu seu rosto corar e sem graça nem se mexeu para pegar a bola que lhe batera nos pés. Apenas sorriu para o garoto.
Estela, entretanto nem se abalou, levantou-se tranquilamente e mais rápido que Claudia percebesse já estava em pé ao lado do portão e sorrindo entregava a bola ao garoto. O menino por sua vez sorriu com um ar maroto e foi embora batendo a bola no chão. - “Que bom que já foi. Pensou Claudia, meio chateada por não ter tido tempo de pegar a bola e entregá-la ao garoto. Como eu sou boba! Se fosse eu, era capaz de tropeçar e cair com bola e tudo. Como eu sou idiota”!
Quando o garoto saiu de suas vistas Estela, voltou andando para a varanda na direção de Claudia rindo e balançando os dedos em sinal de perigo. Batia freneticamente o dedo indicador nos dedos polegar e médio, que se encontravam unidos. Rindo maliciosamente perguntou: – “Você viu que lindo? E tem o olho azul! Claudia riu e fingiu concordar com Estela para não parecer infantil, mas intimamente ela pensou. – “Grande coisa que tenha o olho azul nem ligo! Até parece que a cor dos olhos quer dizer alguma coisa.”
- “Toma, pegue o seu anel” disse Claudia devolvendo-lhe o suposto presente.
Menos de um minuto depois, para surpresa das duas, e desespero de Claudia, o menino voltou. –“Estamos jogando vôlei... Vocês querem jogar também? Bem, primeiro oi né? Meu nome é Carlos Eduardo, que falta de educação a minha, nem me apresentei! E vocês como se chamam?
Estela mais que rapidamente e com um sorriso maior que o rosto adiantou-se apresentando a si mesma, e também à Claudia como sendo sua prima de São Paulo.  O garoto então se dirigiu a Claudia que continuava sentada dizendo –“De São Paulo é? Por isso nunca te vi por aqui.” Mas de você acho que me lembro... Só que menorzinha”. Carlos  Eduardo dirigia-se a Estela, mas ainda mantinha os olhos em Claudia que sorrindo timidamente informou: -“Já faz tempo que eu estive aqui, mas não é a primeira vez que venho”. O menino concluiu a conversa dizendo: – “Me mudei novamente para cá faz pouco tempo, não tem um mês, vai ver é isso. Mas e aí vamos jogar?”
Estela respondeu já ultrapassando o limite do portão. - “Vamos sim”! E Claudia lembrou: -“Bom, então Estela, vai indo que eu aviso tia Rosa e vou em seguida”. - “A gente te espera! Disse o garoto. Claudia voltou-se estranhando a gentileza e disse. – “Não precisa, eu vou em seguida! Vai ser rápido, podem ir.
Claudia corria pelo corredor imaginando o que poderia fazer para não ter que atravessar aquele portão. O que ela poderia fazer para não ir. Entrou em casa, foi ao banheiro. Lavou o rosto e olhou-se no espelho arrependendo-se de te saído de casa do conforto de seus livros e do seu quarto. A salvação seria tia Rosa dizer que não era recomendado que as duas fossem brincar com estranhos...
Após comunicar a tia sobre o convite, Claudia voltava a passos lentos pelo corredor pensando: - “Bom então tá né?” –“Puxa como tia Rosa é boazinha, conhece muito bem o menino e ainda por cima gosta dele.” Edu era como tia Rosa o chamava. – “Ah que bom o Edu está aí, já voltou com a família! Que coisa boa não é mãe?” Dirigindo-se a D. Clotilde. Que da pia onde passava café abanou a cabeça afirmativamente.  - “Lógico que vocês podem ir lá brincar.” A tia achou o máximo que as duas fossem a casa dele. E ainda recomendou que ele dissesse a ele que fosse vê-la antes de voltarem a São Paulo.
Claudia estava absorta em seus pensamentos e estava quase no portão da casa do menino quando deu de cara com Estela. – “Credo que demora! Já ia te buscar! Olha você entra naquele time.” Mandou Estela.
Sem alternativa Claudia colocou-se no time determinado e não deixou de notar que Estela estava no time de Edu. – “Que menina oferecida. Ainda bem que eu não sou assim, no fim das contas ele deve estar rindo dela. É assim que os meninos fazem, dão corda e depois quando estão sozinhos morrem de rir das meninas oferecidas. Comigo ninguém vai fazer isso.”
Muitos passes, saques, cortadas e principalmente, muitos pontos depois Claudia já nem se lembrava da sensação de medo que sentira ao entrar ali. Estava se divertindo muito, pois seu time estava dando um banho nos adversários. Ela podia não ser boa nessa coisa de meninos, mas de brincar ela entendia e soltou-se. No grupo como um todo havia algumas garotas da vizinhança e pelo menos mais dois meninos que com certeza não tinham a beleza nem a graça de Carlos Eduardo.  
Mais alegre e mais confiante já que muitos dos pontos de seu time foram marcados por ela, Claudia já não se intimidava quando Edu sacava a bola com tudo pra cima dela. Quanto mais ela acertava um movimento mais ele vibrava e gritava: -“BOA!!” Como se fossem do mesmo time. Também não pode deixar de notar que aquele menino, bonito de fato, e a quem Estela estava fazendo tudo para chamar a atenção, na verdade não tirava os olhos dela.
- “Por que ele está fazendo isso? Será que quer tirar onda com a minha cara? A Estela tá fazendo papel de idiota, mas eu não sou idiota. Ninguém vai me fazer de boba!” – “Deixa ele...” Aos poucos sem que Claudia percebesse a coisa mais interessante do jogo era provocar Eduardo cavando pontos em cima dele.
O tempo passou muito mais rápido que o previsto e Claudia já achava que este era um dos melhores finais de semana de sua vida. Já escurecera e o jogo chegava ao fim com uma vitória esmagadora do time de Claudia.
Sentaram-se todos para descansar e beber água. Já iam despedir-se quando alguém teve a idéia de brincar de esconde-esconde. Estela que não conseguira impressionar o menino e ainda por cima tinha perdido o jogo, não demonstrou muito entusiasmo como convite. Mas Edu foi veemente e insistiu. Enfim todos aceitaram.
Claudia argumentou que não conhecia o lugar como os outros e teria dificuldades para encontrar bons esconderijos e assim seria prejudicada. Houve uma tremenda algazarra para dizer que sua desculpa era esfarrapada e que, portanto deveria brincar assim mesmo.
Edu interveio dizendo: - “Nas duas primeiras rodadas você fica comigo e a gente se esconde juntos, eu te mostro os lugares e depois você se esconde sozinha tá bem? Surpresa com a proposta e feliz de ver a cara de espanto de Estela, Claudia aceitou. Estava achando aquele menino diferente dos outros e ele a tratava de um jeito diferente também.
Ver a cara de Estela quando Edu falou aquilo foi delicioso. Ela não estava fazendo nenhum esforço e aquele menino demonstrou desde o começo sua preferência por ela. O ego de Claudia estava sendo acariciado. Aconteceram uns risinhos maliciosos também. Mas Claudia fez questão de desconsiderá-los. Ela estava feliz, nunca se sentira cortejada tão acintosamente em sua vida. As atitudes de Edu não deixavam dúvidas: ele havia gostado dela. – “Talvez ele me ache bonita.” Sorriu para Edu com uma segurança que não sabia possuir.
Amanda uma menina que morava por ali foi sorteada para ser a primeira a bater cara, e o pique seria o muro da casa em frente a de D. Clotilde. Toda a rua era considerada como local permitido para esconderijos, não importava se era área interna ou externa, seriam permitidos todos os quintais que conseguissem entrar.
-“Nossa como é gostoso morar no interior” Pensou Claudia surpresa com tamanha liberdade.
Um, dois, três e correria geral... Cada um para um lado. Eduardo puxou Claudia e correram juntos de mãos dadas. Naquela hora ela o achou ainda mais lindo. Seu cabelo bem loirinho e há muito precisando de corte já lhe batia na testa escondendo os olhos. Quando acontecia ele fazia um movimento rápido jogando todo o cabelo para trás.
Ele sabia trilhas e as utilizou para despistar os outros. Foram pela frente da casa entraram por um terreno baldio deram uma volta enorme. Agachando-se e se esgueirando pelos cantos. – “O que será que ele pretende?” Fosse o que fosse Claudia iria com ele.  Pularam o muro que separava o quintal de D. Clotilde daquele terreno baldio. Claudia nem sabia como tinham chegado até lá. Naquele momento gelou. – “Aqui não! Minha tia pode achar ruim! Falou baixinho – “Deixa de ser boba” disse Edu. - “A gente sempre se esconde por todos os quintais e ninguém liga. Vem, vem logo!” Claudia se deixou conduzir.
Foram para os fundos do quintal e Eduardo ia diretamente para a goiabeira. Ele nem perguntou se ela conseguiria subir era como se tivesse certeza que sim. Subiram o mais alto que puderam. Eduardo olhando para ela disse com um sorriso maroto: - “ Não vão achar a gente aqui tão cedo. Vão cansar de procurar!” Pudera! A copa da goiabeira estava envolta pela copa da mangueira de um lado e do abacateiro pelo outro. Provavelmente se olhassem para o alto ainda assim não os veriam.
Que menino era aquele? Gostava de brincar, subia em árvore e ainda levava ela junto. Era tudo muito confuso sentia-se atraída pelo menino e mesmo assim não se sentia infantil por saber subir em árvores. De alguma forma ele parecia gostar que ela fosse moleca. Desde o jogo ele demonstrou isso. Claudia percebeu que com Edu ela não precisava fingir ser quem não era. Ele era diferente dos meninos que ela conhecia. E ela provavelmente era diferente das meninas que ele conhecia. “Poderiam ser os melhores amigos”. Pensando assim, Claudia subiu na árvore com a rapidez de um menino.
No fundo sabia que ele havia usado de um subterfúgio para ficarem sozinhos. Claudia estava confusa e feliz.
Ficaram em silencio quando viram um grupinho que já havia sido encontrado passando ao longo do muro provavelmente procurando por eles. Eduardo colocou-se em sua frente e num gesto rápido lhe tapou a boca com a mão. Ao fazer isso seus corpos ficaram tão próximos que ela pode sentir não só sua respiração, mas também as batidas do coração de Eduardo bem junto do seu. Sentia o cheiro dele se misturando ao cheiro das goiabas que perfumavam o ar.
Claudia ficou congelada, parecia que o mundo inteiro tinha parado. Não saberia explicar o que estava sentindo. Queria que o tempo parasse. Não havia mais tia, nem Estela nem todos os meninos e meninas chatas de sua escola. Não havia pai nem mãe. Havia apenas aquele menino respirando quase em cima dela. Tão perto que ela via sua imagem nos olhos dele. Claudia pode sentir o cheiro de seu hálito e ver que os olhos de Eduardo procuravam sua boca e seus olhos como se lhe pedindo permissão.
Ninguém precisou explicar o que ele queria e Claudia suavemente empurrou Eduardo dizendo: - “ Não... não”.  Havia sido tudo muito rápido. Claudia não estava pronta e Eduardo gentilmente afastou-se e sorrindo disse: - “Espera”. E num estalo deu-lhe uma ‘bitoca’ roubada. Rindo, subiu como um gato mais alguns galhos e voltou com uma enorme goiaba não muito madura, daquelas no ponto para se comer sem medo dos bichinhos.
Dando uma mordida gostosa Edu colocou a goiaba na boca de Claudia e esperou que ela desse uma bela mordida. Foi um gesto meigo. Dividiram a goiaba até o fim. A goiaba fez as vezes daquele beijo não dado.
Comeram com gosto muitas goiabas e também riram muito dos outros que passaram muitas vezes de um lado para o outro sem olhar para cima. Ficaram amigos pra sempre, daqueles que são íntimos e cúmplices. Eles não sabiam ainda, mas um dia seriam namorados também.
Claudia desceu daquela goiabeira mais contente com sua idade. Sabendo que ela tinha a liberdade para escolher quando seria hora para beijos. Estava certa que agora ainda era hora de brincar e subir em árvores, independente do que pensavam pessoas como Estela ou quem quer que fosse.
Naquele final de semana ela aprendeu que existem pessoas que sobem em árvores pra sempre!  Se tiverem vontade até ficarem velhinhos como seu pai. Ou, até quando seus corpos permitirem.

sábado, 4 de dezembro de 2010

"Três Vezes Maria"

A todas as mulheres, inclusive as que ainda não nasceram... 
Ela corria para chegar ao ponto antes do microônibus tentando se equilibrar sobre as sandálias. - “Devia ter colocado aquela mais velhinha pelo menos não ficaria saindo do meu pé”. Ai que saco! Qualquer hora eu caio e aí sim fica pior. Como vou trabalhar com um pé quebrado? Nossa, credo, deve doer muito!” Lembrou da irmã sofrendo por bastante tempo. A imagem de sua irmã, sentada no sofá com a perna numa cadeira, reclamando do gesso viera como um alerta de cuidado em sua cabeça. – “Quando voltar encosto essa sandália num canto”.
     De um salto subiu na lotação, e com dificuldade alcançou o último dos degraus da escada. Segurando-se fortemente, procurou com os olhos o motorista, se aquele infeliz prestasse atenção aos passageiros que entram ou saem do coletivo teria visto que Maria lhe lançara o seu olhar mais revoltado. Procurou em sua volta olhares que lhe dessem apoio, talvez se tivesse encontrado algum, teria reclamado em voz alta. Estava brava. Ela nem sequer havia saído dos degraus e aquele homem horrível e sem educação já havia pisado ferozmente no acelerador.
     Estava atrasada. – “Inferno, como está cheio!” Falou em voz baixa. Já haviam andado alguns quarteirões e ela ainda estava em pé próximo a escada de entrada. – “Ainda bem que não preciso fazer aquela viagem todos os dias”. Era diarista e no momento só estava com três casas para faxina por semana. Isso significava também que o dinheiro estava curto e que a dívida no mercadinho estava cada dia maior. – “Pensando bem seria melhor ter que passar por isso todos os dias e levar mais dinheiro para casa”.
     Sentia-se com sono e cansada, naquele momento, um tanto ultrajada também. O homem que entrara um ponto depois do seu, ficava mais próximo a cada movimento mais forte do veículo, Maria começava a sentir a respiração dele em sua nuca e aquilo a estava deixando completamente desconfortável. Mais um solavanco e pronto, estava confirmado: aquele sujeito estava se aproveitando da situação. O canalha esbarrava sem querer a mão em suas nádegas. –“Que imbecil! O que eu faço? Como saio daqui?” Pensou quase em voz alta.
     Fez um movimento estudado tentando abaixar-se e passar entre a senhora gorda a sua esquerda e uma estudante a sua frente, essa por sua vez, carregava uma enorme mochila nas costas. Tão grande que com certeza ocupava o lugar de uma pessoa. Bem, pelo menos o lugar de uma pessoa pequena como Maria.
     Maria não iria permitir que aquele homem nojento se aproveitasse dela, e como não conseguira sair do lugar, decidiu usar o seu famoso pisão no pé. Afinal, talvez tivesse escolhido a sandália certa. O salto era bem fininho e com certeza aquele tarado sentiria dor no local atingido por dias. Como era de se esperar em uma situação destas, ele torceu o nariz e engoliu em seco, mas nem sequer reclamou. Calou-se declarando assim sua culpa. Acostumado a arriscar-se, o sujeito sabia que se falasse algo a coisa se complicaria e ele estaria realmente encrencado, afinal existe um certo “código de conduta” nos coletivos.
     Depois do microônibus ainda viria o trem. Pelo menos lá ela não iria chacoalhar tanto. Estava ficando enjoada e ainda faltavam uns quinze minutos para chegar ao seu destino. Maria começava a suar frio, não se sentia bem e no seu íntimo imaginava com preocupação a próxima etapa de sua viagem que se daria de um extremo ao outro da cidade.
     -“Tenho que melhorar. Talvez no percurso entre o final da lotação e a plataforma. É ao ar livre, e assim talvez quem sabe essa horrível sensação de fraqueza passe”. Pensou enquanto apertava os passos já livre da tortura que havia sido sua viagem até então.
     Desde muito pequena sentia-se incomodada ao ficar em lugares muito cheios e quando estava nas conduções, o que a aturdia, não era só a quantidade, mas a enorme proximidade a que as pessoas se viam obrigadas a estar. Tocando-se, se roçando. Gostaria de escolher quem fosse roçar nela afinal.
     Andara muitos passos, já quase adentrara o trem e ainda sentia-se mal, parecia estar piorando. Maria sabia muito bem o motivo de seu mal estar: estava grávida. Novamente.
    Se não acreditasse que uma criança é sempre um presente divino Maria não estaria sofrendo tanto. Sentia-se culpada por que seu único desejo, desde que soube da gravidez, era não estar grávida. Faria qualquer coisa para não estar grávida. E desejava também que aquela criança não pudesse lhe adivinhar os pensamentos. Havia tomado todos os remédios e feito todas as simpatias que lhe haviam ensinado. Mas dessa vez, não dava certo. Essa criança tinha uma teimosia que já se fazia anunciar.
     Dorival não queria mais nenhum filho. E ameaçou abandoná-la caso engravidasse outra vez. Meu Deus, ela havia tomado tanto cuidado, mas aquele infeliz que ela chamava de marido quando vinha bêbado pra casa... “Aí não tinha jeito! Tinha que ser como ele queria”. Infeliz ele, infeliz ela. –“Porque não tinha ido embora pra casa de sua mãe? Devia ter “pego as crianças e ido embora”.
     Apesar de tudo Maria amava Dorival e estavam juntos há oito anos. E ela sabia muito bem que apesar das bebedeiras, das dificuldades, mesmo sabendo que todas as necessidades que estavam passando eram de certa forma culpa de Dorival. Ela o amava.
     Maria sabia que sem ele, não seria feliz.  Não haveria outro homem para deixá-la tão sem defesas como seu Dori a deixava. Quando chegava por trás passava os braços em volta dela e começava a cheirar seu pescoço... Assim sem aviso. Mas quase todos os dias! -“Eta homem fogoso meus Deus”! Riu-se ao imaginar Dori fazendo o que ele sabia fazer de melhor: amor com ela.
    “Daí olha só o resultado, pensou. “Grávida outra vez”. Neste momento um gosto horrível subiu-lhe a boca. O trem estava tão cheio quanto a lotação. –“Ai meu Deus vou ter que descer aqui mesmo! Onde é que eu estou?” Não havia chegado nem a primeira de doze das estações que percorreria. O suor gelado anunciava a todos a sua volta que algo estava errado. Olhava para fora e só via concreto, o ruído normal de pessoas falando e do trem empurrando o vento no túnel tornava-se ensurdecedor. Empurrou a todos que estavam a sua frente e como pode chegou até a porta.
     Maria perdeu a cor. O mundo de Maria perdeu a cor. Desmaiou no vagão lotado.
Acordou minutos mais tarde num pronto socorro que não tardaram a lhe informar o nome. A enfermeira queria saber se havia alguém a quem ela quisesse avisar, alguém para buscá-la.  E ainda rapidamente para tentar acalmá-la disse-lhe num tom muito feliz: - “Ah! É claro o seu bebê está muito bem viu? Onde você está fazendo o pré-natal? Parece que você precisa se alimentar melhor menina”. Pobre Maria, já não ouvia mais nada, apenas mantinha os olhos fixos na enfermeira que continuava a discorrer sobre todos os cuidados que precisaria tomar de agora em diante.
     Não estava feliz e sabia que já não havia mais como fugir do problema. Perdera o dia de trabalho. Precisava avisar a patroa que estava doente, afinal teria o atestado e deveria ir para casa, foi-lhe recomendado repouso pelo resto do dia. E ainda hoje teria que contar sobre a gravidez para Dorival. Ainda não tivera coragem.
     Sim. Era isso, iria para casa e aproveitaria o fato de que neste horário Dorival ainda estaria sóbrio. “Seria a melhor hora para dar a notícia!” E ainda por cima, para piorar as coisas, não tinha dinheiro para passar no açougue e dar conta da mistura. “E agora o que faria de comida?” Pensou aflita, esquecendo-se que esse era de fato o menor de seus problemas.
     Ainda bem que nesse horário as crianças estavam na creche e só as buscaria à tarde. Daria tempo de contar ao marido e ainda controlar a situação. Talvez até fizessem as pazes antes de buscar os pequenos –“Meu Deus não é possível que ele não entenda. Afinal eu não fiz o filho sozinha! Mas ele foi tão claro quando disse que iria embora. E se ele fosse mesmo embora o que ela faria da vida?”. Ela com duas crianças pequenas e mais um na barriga.
     -“Que droga de vida. Porque não me cuidei mais? Homem de merda! Só sabe reclamar! Por que é que ainda fico com ele?” Lembrava-se de todas as brigas que já tivera com Dorival quando engravidou do segundo filho que agora tinha um ano e meio. Por pouco ele não fora embora.
     Às vezes não entendia a si mesma. Como poderia amar um homem assim dessa forma meio maluca? Sua irmã não gostava de Dorival e dizia umas coisas que a deixavam confusa e ela preferia não dar atenção.  Maria era incapaz de enxergar o egoísmo cínico de Dorival e preferia ficar afastada da irmã para não ter que lidar com o que poderia ser verdade.
     Acreditava que no fundo Dorival era gente boa e que a amava também. Afinal ele sabia como agradá-la e acende-la como nenhum outro. Além do que, ela acreditava em sua fidelidade. Ele nunca a havia traído e também nunca batera nela. Seu único defeito era a bebida. Se não bebesse era um santo homem.
    -“Ainda não nasceu o homem que vai encostar um dedo em mim. Não, em mim não! Que não sou besta feito a Aparecida. Oh! mulher tonta! O homem apronta, é o maior galinha da cidade e ainda bate nela. E ela tá lá sempre pronta a perdoar. Ah não, traição não perdôo”. Pensou cheia de si e convencendo-se que seu Dori era diferente.
    -“Não ele não irá embora! Vai brigar, falar, xingar, ameaçar mas no fundo vai ficar comigo e depois agente faz as pazes. E olha só, como já tô grávida mesmo, vamos fazer um amor despreocupado, gostoso”. Sorriu maliciosamente desenhando na mente o corpo nu de seu homem. –“Como é bonito!”
     Estava quase chegando seu coração batia cada vez mais rápido, teve medo de passar mal novamente. –“Acho que vou passar na casada Cleuza antes, tomo lá um café, uma água, jogo um pouco de conversa fora e assim me acalmo”. -“Incrível ter conseguido esconder a barriga tanto tempo”. Já estava de quase cinco meses e ninguém havia notado ainda. Nem mesmo a amiga Cleuza.
    -“Acho que tô muito magra”. Apertava os passos acelerando a caminhada, maldizendo a sandália e a própria vida. Cruzou algumas pessoas no caminho e se perguntou se talvez eles pudessem imaginar o que lhe esperava em casa. Não gostava de discussões e odiava brigar com Dorival. Odiava ainda mais quando brigavam na frente das crianças.
     Pensou nos filhos, pensou na falta de dinheiro, pensou na patroa que ficara a ver navios. Cumprimentou a velhinha da quitanda. –“Pobrezinha essa sim sofre. Já não bastou criar os filhos e agora tem de pelejar com um neto drogado. O infeliz até bate na pobre para roubar o seu dinheiro”. –“Oh vício maldito!”. Pensou em voz alta
     E pensando assim ponderou - “Ainda bem que Dorival só bebia. Ah! Maldita cachaça!”.
     Estava quase na casa da Cleuza. Quando chegou ao portão estranhou a janela aberta, havia coisas espalhadas no quintal, mas não via a amiga. -“Vai ver está nos fundos pendurando roupas no varal.” O quintal de terra, cheio de pequenas plantas fortuitas denunciavam a falta de capricho de Cleuza. –”Se eu tivesse um quintal assim deixava bem bonito” pensou Maria. Observando os brinquedos espalhados e cheios de lama da última chuva revoltou-se. “O mulher relaxada essa minha amiga!” “Vou puxar a orelha dela, assim não ensina nada de bom a essas crianças” Em silêncio sorriu, lembrando-se do jeito moleque de sua amiga mais querida.
     Contornou toda a casa e quando já estava chegando à porta da cozinha estranhou ao ver encostada na parede ao lado do tanque uma bicicleta igualzinha a de Dorival. Seu corpo todo estremeceu. Não era igual, era a bicicleta dele. A idéia que lhe invadiu a mente foi tão terrível que tentou afastá-la, sem sucesso.
     Sentia com o peito, com o coração, mas a mente não se pronunciava. Maria não estava pensando mais. O pânico havia tomado sua alma. –“Será? O que Dorival estaria fazendo ali? Naquele horário?” Teve ímpetos de chamar por Dori ou por Cleuza, bem alto. Não o fez tampouco, o corpo tremia convulsivamente e a voz não lhe saiu. O coração não tinha mais ritmo e parecia que ele lhe batia pelo corpo todo.  
     O coração de Maria havia migrado de seu peito.
     Em sua mente surgiu a imagem de Dorival, seu sorriso, seu jeito de olhar por trás dos cabelos. Veio também a imagem deles dois novinhos, namorando.      -“Ele é meu homem, meu marido. – “Não, não pode ser”...
     E assim, sem que Maria percebesse em sua alma se fez total silêncio. Implantava-se a total ausência de cor, de vida e de razão.
     Com a respiração presa, o mundo havia ficado em silêncio, era como um desmaio novamente. Era o nada. O silêncio denunciava o crime de Dorival.
     Mais um passo... A cozinha em bagunça... Uma lâmina, um gemido. Um grito: -“MARIA!!!” Seus olhos só viam o brilho da lâmina. Nem sequer sabia quem havia gritado. Seu peito brandia com um gemido de dor. O reflexo da luz na lâmina da faca cegou seus olhos. Sentiu uma dor aguda e o cheiro de sangue.
     Sentiu um soco dentro de seu ventre. Um soco tão forte que a tirou do estado de torpor em que havia entrado. Era a primeira vez que aquela criança se mexia. E ao mexer-se salvou sua mãe de uma tragédia quase consumada.
    Maria quedou-se parada na porta da sala olhando fixamente para Dorival e Cleuza. Nus, suados e com os olhos esbugalhados de medo e surpresa.  Maria em pé estática segurando aquela faca que encontrara no caminho. O cheiro de sangue que Maria havia sentido era dela, cortara a mão sem perceber. Cortara-se de dor e tristeza no mesmo momento em que flagrou os carinhos que eram dela no corpo de outra.
     O ódio e o torpor que lhe tirara os sentidos a fez apertar a lâmina da faca na própria mão. Instinto, reflexo impensado. Aplacado pelo movimento brusco daquela criança que trazia no ventre. Sentiu a cumplicidade de uma mãe com seu filho. E nesse momento percebeu o quanto amava aquela criança.
     Dorival não a merecia. Não merecia Maria, nem os filhos que ela havia lhe dado. Muito menos esse que ainda estava em seu ventre.
     No flash desencadeado pela lâmina daquela faca, Maria acordou. Saiu correndo precisava buscar as crianças. Já não havia mais nada para ela ali. Precisava salvar-se e salvar seus filhos
     Sentada num banco da rodoviária Maria fitava seus filhos e sentia-se mais velha, mais madura e mais mãe. Ao lado, poucas sacolas para poucas roupas. Poucos pertences para muitas histórias. Na bagagem muita dor.
     Ela que tanto rejeitara aquela barriga, agora se sentia tranqüila, mais forte, mais gente. E muito mais preparada para enfrentar as dificuldades que com certeza viriam.
   –“Sou muito mulher!” pensou enquanto o ônibus estacionava em sua frente. Ela com seus dois filhos pequenos e aquele que ainda chegaria.
     Ela agora era três vezes mais Maria.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010



Olá pessoal!

Em no máximo uma semana estarei publicando mais um conto. Creio que está ficando bem legal e espero que gostem.
Até lá...

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Um tango para Eulália

Um tango para Eulália
Sandra Santos
Eulália e o homem que escolhera para companheiro haviam chegado àquela cidade há uns dois dias, vieram para algo que ela considerava como uma espécie de lua de mel. A cidade era Buenos Ayres e o hotel em que estavam hospedados era lindo, tinha um ar antigo, digno de um musical de várias décadas atrás.  Chique e pretensamente “Cult”, tão refinado quanto ultrapassado. Lindo, mesmo assim.
Para Eulália que crescera em uma família pobre, tudo era novo, deslumbrante, até o cheiro da cidade era especial, as pessoas que passavam pela rua combinavam tanto com a cidade que pareciam colocadas ali apenas para enriquecer o cenário. Como figurantes escolhidos cautelosamente em um set de filmagem.
Mas ainda assim, apesar da beleza do lugar e de ter se preparado por dias para essa viagem havia a terrível sensação de estar no lugar errado. Sentia-se uma criminosa e não queria que seu companheiro percebesse. Afinal quando voltassem iriam viver juntos. Estavam juntos a pouco tempo e somente agora podiam circular assumindo-se como um casal. Até pouco tempo eram amantes acostumados com a clandestinidade. Talvez por isso essa sensação de não merecer estar bem, de não sentir-se tranqüila como seria o esperado. As confusões e os sustos, a sensação de criminalidade, ficariam para trás. Isso é o que ela dizia para si mesma tentando se convencer, sem nenhum sucesso.
E ainda havia a tristeza profunda causada pela dor da recente e tumultuada separação. Vivera o fim de seu casamento de 10 longos anos.  Um fim nada tranqüilo envolto em brigas e acusações de traição.
Uma única vez traíra e essa traição fora causada por uma paixão incontrolável e agora ela estava ali há quilômetros de distância, com aquele que era o responsável pela reviravolta na sua vida. Eulália apaixonara-se loucamente por Jairo, um argentino bonito e alguns anos mais jovem, que ela conhecera em uma reunião de negócios. Parecia que era recíproco, parecia que ele havia se apaixonado também. Ela precisava acreditar nisso.
Aquele homem de todas as formas possíveis e imaginárias fazia que ela se sentisse amada, desejada. Agora ali naquele lugar distante Eulália sentia medo, sentia-se insegura, não sabia por que, mas algo lhe tirava a tranqüilidade. O homem por quem se apaixonara de repente em algumas ocasiões que ela não saberia ainda localizar parecia-lhe estranho.
Saíra de um relacionamento regado a solidão, precisava da atenção que Jairo lhe dava. Mas... Havia um “mas” pairando como uma névoa sobre sua cabeça. Tudo se parecia demais com uma mentira. Um lado dentro de sua mente já havia decretado: era tudo uma mentira. Mas uma mentira que agora, ela teria que viver. Seu coração lhe alertava ficando dando-lhe pequenos sinais o tempo todo. Mesmo assim ela queria e preferia enganar-se, forçando-se a ficar imune aos alertas de sua intuição. Faria um esforço para sacudir aqueles pensamentos que de nada serviriam para sua felicidade agora.
Seria possível não sentir alguma alegria em conhecer uma cidade tão bonita? Não obstante todos os comentários preconceituosos sobre a antipatia dos argentinos, ela sentia-se extremamente bem recebida, quase como uma conterrânea. Na verdade, seu biotipo realmente fazia com que ela parecesse muito com uma filha da terra. E preferiu pensar que as diferenças eram mesmo somente relacionadas ao futebol.
Como estava combinado, ele a levaria para conhecer a noite portenha, o tango o vinho e seriam momentos inesquecíveis. Ele falava muito sobre a noite argentina e seus encantos. Eulália havia mesmo imaginado muitas vezes a boemia em Buenos Ayres. No fundo tinha um lado seu que apreciava a beleza das noites. Sempre sentiu uma curiosidade romântica acerca dos seres que vagam solitários na noite. Em sua ingenuidade acreditava que todos os boêmios eram artistas, compositores, músicos. Nem de longe se permitiria imaginar criaturas tristes e solitárias vagando sem rumo.
Preparou-se, perfumou-se e vestiu sua roupa especial, estava linda, sentia-se estonteante para a tão esperada noite com o tango. Presente de Jairo a roupa era tão cara quanto seu salário de um mês. Sentiu-se estranha, nunca gastaria tanto dinheiro em uma peça de roupa. Apesar de agradecida achava aquilo um desperdício. Talvez tivesse que se acostumar com aquele tipo de capricho pensou aprovando a imagem que via no espelho. Afinal ele tinha uma condição financeira muito melhor que a dela, mesmo assim toda a simplicidade de sua vida lhe causava certo desconforto com a situação. 
Um momento especial. Porque não conseguia sentir-se feliz? Porque ele simplesmente não a havia levado para um lugar sossegado, simples e sem tanta gente, sem tanta pompa? Porque não tinham ido para alguma praia no Brasil mesmo? Um hotelzinho no meio do nada. Era ainda muito cedo para esse tipo de situação. Ela não estava preparada.
Talvez fosse mais prudente deixar passar o primeiro choque da separação, dos insultos e dos olhares de desaprovação de todos. Será que um dia realmente seriam felizes. As idéias lhe ferviam na mente enquanto dava um último retoque no batom.
Ele não parecia em nada incomodado. Pelo contrário. Tinha apenas unido o útil ao agradável e a escolha de Buenos Ayres se dera também além do fato de ter nascido ali porque tinha muitos negócios importantes a resolver por lá. Sua empresa possuía uma filial no Brasil. Talvez as viagens a Buenos Ayres se tornassem mais freqüentes do que Eulália poderia supor e esse pensamento não lhe pareceu muito agradável.
Enquanto desciam pelo elevador observava atentamente e refletia quanto a postura de Jairo e o ouvia ao telefone dando as últimas instruções para o que se tornara um encontro de negócios: Porque ele não percebera que ela estava assustada? Que simplesmente queria um pouco de tranqüilidade e segurança? Um pouco de paz. Para uma mulher, parece que o processo de separação é mais difícil. Eulália tinha um espírito dócil, não gostava de imaginar que poderia ser a causa do sofrimento de outras pessoas. E era acusada sem dó de provocar dor em muita gente. Jairo por sua vez não conseguia enxergar a nuvem de medo atrás dos olhos de Eulália. Naquele momento ela ainda não sabia, mas ele não conseguia ver mesmo muito além de si próprio. Infelizmente ela perceberia isso muito, muito rápido.
Ele escolhera um pequeno bar no charmoso bairro de Saltelmo em Buenos Aires, e para aquela noite tão prometida que deveria ser só dos dois, haviam inúmeros convidados, estranhos que falavam uma língua estranha e tão rápido que ela só conseguia sorrir assentindo com a cabeça.
Chegaram e afinal o bar não era assim tão longe do hotel, ao entrar ela sentiu-se maravilhada. O bar, sabiamente chamado de “Bar da Noite” não era voltado aos turistas. Sua decoração era antiga, os móveis de madeira escura e torneada, perfeitamente cuidados, deveriam ser de dois séculos atrás e lembravam alguns que havia visto em um museu quando criança. O piso de ladrilhos brancos e pretos atribuía ao local o que Eulália considerou chamar de verdadeira essência de um lugar. O cheiro, a poesia e a música, as pessoas, tudo divinamente organizado para uma noite inesquecível.
Quando entrou naquele lugar decidiu fazer daquela uma noite fantástica, precisava desesperadamente sentir-se feliz. 
Ela estava vestida como uma princesa e sentiu-se no clima da noite portenha, esqueceu-se um pouco das tristezas de seu coração. Esqueceu-se dos convidados de Jairo. Abstraiu-se das conversas chatas e formais, das delicadezas mentirosas e da ausência do companheiro que se entregou a agradar seus convidados, para salvar a sua noite entregou-se as delícias do vinho e do tango.
O casal que se apresentava era surreal, assim como a “leseira” que o vinho começava a lhe causar. Sua mente estava mais leve e pela primeira vez naquela viagem e em semanas sentia-se feliz. Entrou no clima da noite e na vibração daquela música que era tocada ao vivo por um grupo que parecia ser parte de um museu de cera. Três homens já bem velhos tocando de maneira inigualável instrumentos que além do violão ela não conhecia. A harmonia deles com o lugar era perfeita, não dava para imaginar aquele bar sem eles. Talvez tivessem nascido ali pensou Eulália meio zonza.
Olhando para os convidados em sua mesa pensou: Ai meu Deus como esses caras são chatos! Riu-se imaginando que talvez o vinho estivesse fazendo com que ela visse uma espécie de legenda, e a língua que eles falavam já nem era tão estrangeira assim. Jairo desapareceu na fumaça dos cigarros e nas risadas das pessoas presentes. Ela já não estava mais com eles. Estava sozinha novamente como nos longos anos de seu casamento. Engraçado ela sentiu-se a vontade consigo mesma e com a liberdade para divertir-se com tudo o que via. Tudo tão novo e diferente.
O lugar era perfeito e ela estava feliz naquele momento. Anunciaram o show da noite. O Tango. Ah! O tango! Que música de sedução, que beleza a harmonia que um casal deve possuir para desenvolver todos os passos intricados e elaborados do tango. Eulália pensou se o sexo fosse uma música seria definitivamente o tango. Foram várias músicas e mais uma taça de bom vinho, e ela estava maravilhada com o que via. Invejou conscientemente a dançarina. Gostaria de trocar de lugar com ela. Gostaria de viver outra vida. 
Como de praxe o casal terminou sua apresentação convidando pessoas do público para dançar.  Pareceu a Eulália que isso era costumeiro, parte mesmo do show e embora achasse que seria demais querer participar da brincadeira intimamente desejou ser escolhida.
A moça escolheu um homem grisalho e tímido da mesa ao lado, que por coincidência era formada por brasileiros, e o dançarino foi direto na direção de Eulália. Não escolheu uma moça qualquer... Escolheu Eulália.
Seu coração disparou e sem acreditar muito no que acontecia pensou que talvez não fosse verdade talvez fosse uma alucinação causada pelo vinho. Mesmo assim, Eulália estendeu a mão para aquele moço bonito. Quase já no meio da pista lembrou-se de Jairo buscou um olhar de aprovação de seu parceiro e não o recebeu. Ao olhar a sua volta, porém viu a aprovação do bar inteiro. Dirigiu-se para o meio da pista, era isso que todos esperavam. Que ela aceitasse o convite. Era isso que todas as mulheres naquele bar queriam. Era isso o que ela queria. E foi.
Por minutos que pareceram fugazes demais ela se lançou com confiança e liberdade etílica nos braços daquele homem que encarnava a alma da cidade e todas as histórias de paixão e desejo que ela se lembrava.
Rodopiou sem medo nos braços do tango. Não do moço, mas do tango, da poesia que faltava em sua vida. Esqueceu-se da tristeza e do medo e sentiu a musica invadindo sua alma e sua mente. Por momentos esqueceu-se do passado e principalmente do futuro que a apavorava.
Para ser simplesmente livre, simplesmente uma mulher...


sábado, 13 de novembro de 2010

Coisas que vejo: Apartheid no país da igualdade?

Coisas que vejo: Apartheid no país da igualdade?: " Minha gerbera em mil cores  O sono me abate e o dia segue moroso, enjoado. Não há sol e as pessoas estão nubladas. Bocejo e converso ..."

Apartheid no país da igualdade?


Minha gerbera em mil cores 

O sono me abate e o dia segue moroso, enjoado. Não há sol e as pessoas estão nubladas.  Bocejo e converso com meus olhos tentando convencê-los a permanecerem abertos. A mente já adormeceu e o raciocínio repousa no lugar onde moram as idéias sem nexo.
Num esforço para manter o sol e o calor ao menos dentro de mim, me concentro e escrevo. Já começo a aquecer-me.
Observo a minha volta procurando alguma inspiração e computo ao lugar em que me encontro a causa e a fonte desta neblina que me envolve. Parece ter envolvido a todos. Como consigo desfazê-la?  Na esperança de ficar imune olho mais atentamente a minha volta buscando por almas sorridentes, pois acredito,há sim, muitas almas sorridentes. 
É uma pena, neste momento não encontro nenhuma. Ninguém com a tez límpida e aquela aparência que nos conduz a um sorriso espontâneo rápido e que, mesmo apesar de fugaz, nos faz bem.
 Infelizmente, ao olhar em minha volta não encontrei sorrisos muito menos a promessa de algum, encontrei verdadeiros zumbis.
Vagando de um lado para outro, completamente perdidos.  Estão sempre por aqui, os vejo andando em bandos e falando alto numa língua que é quase um dialeto próprio. Suas roupas são tão estranhas quanto seus cabelos e é nítido que existe a configuração de um “bando”. Assim como numa colméia ou numa matilha é a formação do bando que os protege.
 De quem falo?  Montes, pencas de adolescentes “cabulando as aulas”, andando de lá para cá. É a síndrome da sexta-feira. Seus pais em sua maioria não sabem que estão aqui. Fazendo nada além de transgredir uma pequena regra e fazer o que na época da minha mãe chamava de footing, no meu tempo, e isso já é muito tempo chamava-se paquera. Hoje não sei.
O que sei é que se olham e somem, vão apara algum lugar mais isolado. Não necessariamente em pares, isso parece que é coisa antiga! Voltam escolhem outros parceiros e somem novamente. Alguns de tão pequenos parecem ser ainda pré-adolescentes.
São apenas crianças e desconhecem o significado da palavra futuro. Eles residem na periferia da periferia de São Paulo.
Falam pouco e com tantas gírias que quase preciso de tradutor e seus assuntos rodopiam entre futebol, meninos e meninas, sexo e uma coisa barulhenta e vulgar que eles chamam de música. Fumam cigarro e narguilê, carregam bebidas alcoólicas em suas mochilas no meio dos cadernos ainda pela manhã. Não falam de namoro e parece que dificilmente se envolvem emocionalmente, mas enroscam-se pelos cantos aos beijos e amassos. Acho que amasso também é uma palavra antiga, ultrapassada. Sexo, no entanto, já não é novidade para a maioria.
Olho para eles e me sinto extremamente triste, pois sua vida e suas roupas e principalmente suas atitudes escancaram as diferenças sociais, diferenças das quais são vítimas. São estranhos, perdidos e nem em sombra lembram a adolescente sonhadora e ingênua que fui. Há tempos perderam a sua inocência.
Quando consigo ouvi-los conversando entre si ou se acaso converso com um, percebo que seus interesses giram em torno do presente, mais especificamente da hora que está sendo vivenciada, não sonham com o futuro.
Gostaria de ver alegria no rosto destas crianças, queria que sentissem em segurança. Queria que sentissem amor, que também pudessem sonhar com realizações e proezas, assim como sonham outros adolescentes de sua idade. Outros que moram na mesma cidade, mas que são apartadas pela realidade. Realidades socioeconômicas tão diferentes como diferem o Saara da Amazônia.
No Brasil o apartheid é social e aumenta a cada dia.
Estudo, carreira, viagens, aparelhos eletrônicos, roupas, livros, saúde... Isso eles só vêm nas novelas e o pior que se contentam só em ver e acreditam que não merecem.  Mas como merecem!  Todos são as nossas crianças. Mas estas que vejo e convivo são crianças abandonadas, perdidas, soltas ao vento. Tratadas todas como filhos bastardos sem direitos. Completamente sem rumo e sem apoio. Suas famílias inteiras estão abandonadas, bairros inteiros, abandonados. Criando um código de conduta que só prejudica a elas mesmas, crescem acreditando que são a ralé e agem como tal.
Não ousam sonhar e estão aqui e agora fugindo de uma escola que elas não acreditam e que não acredita nelas. Possuem professores que provavelmente cresceram da mesma forma. Acredito mesmo que alguns nem percebem qual é o papel que estão desempenham neste grande teatro.  Outros, já cansados da labuta sentem-se na obrigação de mudar o mundo e sofrem demais para continuar trabalhando e convivendo com essa triste realidade todos os dias, desistem. Outros, e desestimulados não agüentando mais os baixos salários e a sensação de impotência adoecem. Há ainda aqueles que numa tentativa de manter sua saúde mental “largam mão”. Infelizmente, de uma forma ou de outra, conscientemente ou não, todos sem exceção acabam colaborando de alguma forma na perpetuação desse limbo.
Falo agora como professora que já fui e como filha de um professor maravilhoso que dedicou sua vida e sua saúde ao sacerdócio de educar: esses meninos e meninas não querem presentes, não querem agrados. Querem justiça, querem o que é seu. Querem simplesmente um lugar no mundo.
E nós adultos? E eu, que tristemente não consigo fingir que não vejo. Não consigo deixar de sentir e observo o mundo a minha volta. Eu que enxerguei neles a minha distante adolescência? O que eu quero? O que eu gostaria de ver para os filhos de outros assim como quero para os filhos que são meus?  O que eu acho que eles querem? 
Acho querem condições de lutar por espaço de igual para igual. Querem uma luta limpa. Querem que seus pais tenham trabalho e salário, uma escola que reconheça que eles sabem e querem pensar.  Eu quero que eles reaprendam a sorrir.
Acredito que eles querem gritar bem alto: - Eu quero!  Alto, tão alto que não deixe nenhuma dúvida.
Gostaria de imaginar um mundo assim. Onde todas as crianças pudessem sonhar com o que vão ser quando crescer, Um mundo que seja possível desde que se queira.
Infelizmente, cresci ouvindo que o Brasil era o país do futuro. Ainda não sei do futuro de quem.  Hoje vejo um país onde tudo o que se espera é entrar em alguma fila para receber algum benefício.
Vivemos em um país onde sonhar não faz parte, onde os desejos se resumem aos da carne e talvez seja por isso que nossos adolescentes se iniciem cada vez mais cedo no sexo e explorem cada vez mais livremente todas as alternativas. Afinal, do seu próprio corpo, e de uma maneira perversa quase punitiva, ainda lhes pertence. Hoje aos doze, treze anos conhecem o cigarro, bebidas alcoólicas o sexo livre e sem restrições e com o tempo quando o prazer fica mais difícil, recorrem às drogas, a prostituição, a depressão e a solidão.
Morrem cedo, cada vez mais cedo...

FIM

Império
É imperativo que cresça. É imperativo que te empregues.
É imperativo que cases e te reproduzas. Deixe descendentes. Um legado.
É imperativo que tenhas idéias, que saibas o que quer. Que lute por elas, que te definas e que não desistas.
É imperativo que morra?
Imperas em ti?
Imperas ou esperas?
Não se engane amanhã acordarás no mesmo corpo e com os mesmos problemas...
Então lute!
Levante a cabeça que carrega os teus pensamentos, pois estes, ninguém domina são teus.

Sandra Santos
12/11/2010