sábado, 26 de março de 2011

Logo, logo...

Meus queridos amigos, após um período de dificuldades espero estar postando o final da história em no máximo 10 dias. Espero que compreendam e continuem acompanhando.
Dona Eugenia volta com força e vontade.
Abraços a todos.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Dona Eugenia - Parte 2



Dona Eugenia ficou ali observando suas lembranças como se por um presente divino sua vida lhe passasse inteira pela frente dos olhos. Como se seu coração pudesse sentir novamente em primeira mão as emoções, e também o medo que sentiu quando percebeu que seu pai não voltaria. Ninguém sabia de seus irmãos, haviam debandado e se eram vivos ou mortos, só Deus tinha essa informação.
Após perder Januário o primogênito, afogado em uma tormenta, Mestre Dionísio não fez mais questão de levar os filhos consigo em seu ofício bendito. Preferiu se omitir quando eles, um a um, foram corrompidos pelo apelo da vida em alguma cidade que, fosse onde fosse, de lá nunca havia chegado sequer uma carta. Nem poderia avisá-los do desaparecimento do pai e secretamente Eugenia os odiou com todas as forças de seu coração.
Sem a mãe desde pequena, seu pai era sua vida e sua referência. Ele era o único que estaria por ela, para defendê-la e protegê-la em qualquer circunstância. Muitas vezes desejou ter nascido um menino para ir com o pai para o mar. Eugenia sabia que por trás daquele jeito quieto, o pai a amava. O mundo que ela conhecia havia agora acabado e parecia-lhe um buraco sem fundo, escuro e assustador.
 Quase desmaiou na igrejinha durante a missa de domingo quando deram como mortos os pescadores levados por aquela tormenta que ficou celebre. – Agora é oficial. Disse o capelão, e continuou a ler o comunicado escrito pelos oficiais do quartel da marinha que ficava ali em Tamandaré. –Após cinco dias de procura exaustiva a marinha vem a público comunicar as famílias, em seu pesar, que não há mais nenhuma esperança. Nenhum sinal que ainda nos mova a manter o efetivo no oceano para procurar algum sobrevivente. O capelão suspirou enxugando a testa com um lenço e continuou: Que Deus os tenha em sua Glória e Misericórdia, e que a fé possa confortar as famílias enlutadas.
Dona germana contara a todos que a sorte dos pescadores fora comentada na capital, e que a tormenta havia sido notícia no jornal ‘O Diário de Pernambuco’. Uma pequena nota é verdade, mas havia sido notícia. A pequena Tamandaré havia ‘saído no jornal’ e Dona Germana enfatizava a importância do acontecido. De alguma forma deturpada ela estava entre feliz e excitada. Com todo aquele alvoroço agia como se morar na cidade dos fatos, pudesse por tabela torná-la alguém importante ou famosa. Dona Germana garantiu que um conhecido lá da capital lhe conseguiria uma cópia do periódico. 
Até mesmo Eugenia, por mais simples e inocente que ela fosse, sabia que em algum tempo ninguém além das famílias enlutadas iria se lembrar.  Ela entendeu muito rápido que alguns pobres pescadores não tinham importância para mais ninguém além de suas próprias famílias. Naquela manhã que parecia ser a mais quente que ela já tinha visto, começou a sentir-se mal enquanto o capelão dava continuidade aquela missa sem fim.
Queria tirar os olhos de todos de cima dela, pois percebeu que eram olhares de dó. Sentiu medo, muito medo. Eugenia fechou bem forte os olhos por várias vezes para ver se tudo sumia.  Pensou em entrar no mar e encontrar o pai, fosse como fosse. Será que Deus poderia perdoá-la se fizesse isso sem a intenção de voltar? Será que o pai estaria lá no fim do oceano? Será que de hoje em diante ele ficaria em seu pequeno barco sorrindo para sempre? Será que morto sorri? E, já que agora era morto, o pai ainda se lembraria dela?        - Se eu for encontrá-lo... Também serei morta! Geninha desejava estar morta, mais que tudo naquele momento. A vida e a morte brincavam na cabeça de Eugenia.
Na qualidade de dono da embarcação e patrão dos infelizes mortos, o Senhor José Munhoz se dirigiu ao púlpito para discursar. Colocou-se ao lado do capelão organizando algumas folhas amassadas e que chacoalhavam visivelmente denunciando o tremor de suas mãos. Senhor Munhoz era um homem muito gordo que fez um discurso inflamado. Bufou, gesticulou, estremeceu e mentiu usando todas as palavras difíceis que ele sabia que ninguém entenderia. Mas se tem algo que ninguém duvidou é que em nome de suas ambições políticas, naquela missa o ‘Espanhol Maldito’ explorou mais uma vez aqueles pescadores, pois ao utilizar do púlpito treinou por quase uma hora a arte dos falatórios sem fim.
-Espanhol mentiroso, nojento! Qualquer um sabia que se ele chorasse por algo seria somente pelo seu barco perdido.  Cansada, Eugenia preferiu devanear durante o discurso e sofreu pensando que algumas pessoas iam pro inferno. Ela achava que seu pai era um homem bom e que merecia ir pro céu, mas quem sabe o que se passa na cabeça de Deus? E se Ele cismasse? Quem é que podia com a cisma Divina? Será que o inferno era mesmo do jeito que o padre falava? A imagem das chamas no inferno foi tão horrível que Eugenia estremeceu chamando a atenção de Dona Germana que estava sentada ao seu lado.
Dona Germana era uma espanhola bonita que ninguém entendia como podia ela agüentar aquele homem seboso. Eugenia se acalmou um pouquinho quando sentiu as mãos de Dona Germana sobre a suas. Ela então olhou para o altar e pediu perdão ao Menino Jesus e a Virgem por ter pensado em meter-se no mar em busca do pai. Tomara existisse perdão para os órfãos.  Naquele momento Eugenia pediu a Nossa Senhora um favor. Pediu que seu pai fosse para o céu e que não errasse o caminho, que chegasse bem rápido e encontrasse sua mãe, pois assim ele não ficaria sozinho. Naquele momento Eugenia jurou nunca mais desejar a morte.
Depois da missa, voltou para casa levada pelas mãos bondosas de Dona Germana e quando ela foi embora Eugenia viu-se sozinha em sua casa, aquela mesma casa que agora ela desejava rever, se é que ainda existiria.
No meio de um verdadeiro turbilhão de pensamentos Dona Eugenia voltou à realidade e analisou se deveria de fato ir até lá. Estava ali tão perto. Daquele local era só chegar até o riacho e seguir andando um pouquinho pela margem. Um caminho que na verdade ela conhecia tão bem. Só não sabia se deveria ir sozinha ou se esperava que alguém de sua família a acompanhasse até lá. Concluiu que talvez seu tempo acabasse sem que um de seus filhos se dispusesse realmente a acompanhá-la. Resolveu ir sozinha mesmo.
Pediu a Deus para não encontrar ninguém que pudesse lhe atrapalhar a empreitada, deu inicio a sua aventura caminhando pela areia fofa e quente da praia. Deveria chegar até o rio. Enquanto ainda dava os primeiros passos, veio-lhe a mente uma conversa que interrompera entre dois de seus filhos. Ela sabia que eles estavam cansados e que pretendiam dividir o problema, Dona Eugenia compreendeu bem rápido que o problema era ela. Falavam sobre revezar sua presença de forma que ela ficasse um tempo na casa de um depois um tempo na casa de outro. Dona Eugenia percebeu que os filhos mudaram de assunto quando ela entrou na sala. Mais uma decepção para a lista de infortúnios de Dona Eugênia.
Ao lembrar-se deste episódio ela apertou seus pequenos passos enquanto analisava que a pior coisa da velhice na verdade era a droga da doença do corpo. Dona Eugenia nem imaginava que há muito sua mente já dava sinais de enorme perturbação. Todos se preocupavam pela falta de senso que Dona Eugenia vinha demonstrando há meses, e o pior é que ela piorava a cada dia. Só Dona Eugenia não sabia, mas estava senil.
- Eu ‘gostava’ mesmo era de dar um mergulho nessa água agora mesmo! De roupa e tudo, pois que nado melhor que todos eles juntos! Falava em voz alta enquanto andava com dificuldade pela areia fofa e quente que queimava a pele fininha de seus pés. Ela seguia rapidamente e se enroscando na vegetação que denunciava a aproximação do mangue e do rio. Por várias vezes, quase caiu. Não sem esforço, mas em pouco tempo, chegou à beira pequeno riacho de águas transparentes e mansas.
Embrenhou-se pelo caminho a beira do rio que na margem oposta, um pouco mais a frente era contornado por um enorme coqueiral. Andou até chegar ao local onde deveria haver um pequeno portão e parou a olhar para dentro da propriedade que um dia lhe servira como lar. Mais de 60 anos depois, ela estava ali e sentia-se exaurida, extasiada.  
Como naquele dia tão distante pelo tempo em que confirmaram a morte de seu pai, ela estava sozinha. Só, como somente ela sabia ser.
 Hoje velhinha em frente aos escombros do que um dia fora sua casa, Dona Eugenia lembrou-se de que quando Dona germana foi embora ela chorou quase até secar por dentro.  E lembrou-se de ficar na varanda sem ter coragem para entrar. Depois, não saiu por dias, muitos dias.
Mal sabia ela o que a vida ainda lhe reservava, muito em breve viria o espanhol a tirar-lhe da casa...
Continua...

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Dona Eugenia - Parte 1

Este conto será postado  em capítulos e espero que acompanhem. 
Obrigada, Sandra.
                              
Estava só.
Era a planura e solidão da vida.
Era este o peito varonil do mundo.
E amei o sistema de tua forma reta,
a extensa precisão de teu vazio.

"Pablo Neruda - Canto Geral"

             Conheci Dona Eugenia quando era criança e tenho ótimas recordações dela, morava no fim da minha rua e sua casa era a mais simples de todas. O que mais chamava a minha atenção era o jeito simples e a quantidade de filhos e netos que ela tinha. ‘Seu Olinto’, marido de D. Eugenia era um velhinho aposentado que falava pouco e passava o dia inteiro sentado em um banquinho na frente de sua casa. Quando alguém implicava com sua ociosidade ele ria e dizia: -“Se apoquente não filho, que to trabalhando... Agora sou bancário!” E com um ar maroto apontava o banquinho, seu companheiro fiel de fazer nada o tempo todo.
A casa nem era tão pequena, mas me lembro bem que não tinha forro. De qualquer cômodo em que se estivesse dava para ver o telhado. Era pintada de uma cor que não existia, não era rosa nem cor de terra, e eu não sei definir ainda hoje, que cor era aquela. Tinha um jardim gigante e desorganizado, e no quintal muito varais que estavam sempre cheios de roupas coloridas e de todos os tamanhos denunciando que lá morava uma família realmente numerosa.
De todos os filhos só a caçula estudava e estava na minha classe, minha querida amiga Adélia. Para mim era estranho saber que uma criança podia ter tantos irmãos e sobrinhos sendo que Adélia era bem mais nova que alguns deles. Como filha única eu achava isso tudo incrível e muito legal, pois ao contrário de mim na casa dela havia crianças para brincar o tempo todo.  Não demorou muito para que eu percebesse que brincar era algo que não fazia parte da rotina de Adélia, pois com freqüência ela tinha obrigações que eu nem sonhava que uma criança pudesse ter.
Brinquei muitas vezes naquele quintal e nutri em mim enorme curiosidade acerca daquela família, de seus costumes e sotaque tão diferentes do meu. Adorava os bolos e o delicioso chá gelado que estavam sempre prontos para refrescar-nos nos dias de verão.
Adélia respeitava seus irmãos e vez em quando, um deles lhe dava uns cascudos. Joãozinho ou Daniel lhe compravam os cadernos para escola, roupas quem lhe dava era Mariazinha, a mais velha de suas irmãs, geralmente eram usadas e vinham de uma sobrinha mais velha que ela. Os raros passeios eram possíveis graças a sua irmã Dirce. Uma jovem boazinha e muito bonita que era igualzinha a D. Eugenia em uma foto que estava sobre a televisão. A foto já estava amarelada, mas dava para ver a beleza de D. Eugênia na sua juventude. Com certeza Dirce puxara a ela. 
Quando resolvi contabilizar vi que eram nove os filhos de Dona Eugênia, Adélia era a caçula com dez anos naquela época e três a mais que eu. Contei mais de vinte netos e pelo menos uns quinze bisnetos
Crescemos. Um a um os filhos de Dona Eugenia que ainda eram solteiros foram se casando. Alguns iam ficando com as famílias por ali mesmo, construindo no quintal até não caber mais nada. O jardim foi sumindo aos poucos. Eu fui estudar longe em outra cidade e senti muita falta da minha rua e das pessoas que compartilharam a melhor parte de minha vida, a infância. Adélia também se casou muito cedo pelo que eu soube, ela ‘pegou barriga’ e teve que se casar. Faz muitos anos que não a vejo.
Confesso que através da presença de Dona Eugenia e Adélia em minha vida eu aprendi bem cedo que nem todas as crianças sorriem o tempo todo, assim como nem todos os velhinhos também. Aprendi que presentes de Natal vêm somente para alguns, e mesmo achando que talvez Adélia merecesse mais que eu, Papai Noel sempre pulava a casa dela. A velhice de Dona Eugenia e de ‘Seu’ Olinto me fez perceber ainda muito cedo que as diferenças sociais marcam negativamente a vida das pessoas mais humildes. A falta de estudo e de oportunidades muitas vezes determinam histórias e diluem sonhos. Talvez nem Deus saiba, mas por algum motivo torpe, algumas pessoas nascem para serem tristes.
‘Seu’ Olinto, morreu aos noventa e nove anos revezando seus ossos entre o seu banquinho no portão e o hospital já que seu fígado havia há muito sido consumido pelo álcool. Dona Eugênia vinte anos mais nova parecia ter uma força e uma saúde invejável e seu corpo ao contrário de sua mente, teimou ainda bastante com o tempo.
Dona Eugenia viveu uma vida longa às voltas com sua enorme família e eu acostumei-me a encontrar com ela logo de manhãzinha  quando   saia   para     estudar.  –“Oi menina... Vai pra escola? Eu já vou andar um pouquinho... Dar umas voltas no quarteirão. A mãe tá boa?” Não esperava a resposta e seguia sorrindo e cumprimentando as pessoas que cruzavam seu caminho. Levava consigo um séquito de cães vagabundos e vira-latas. Os seus, os dos vizinhos e os enjeitados do bairro também, de uma forma ou de outra D. Eugenia dava um jeito de alimentar a todos. Parecia que aquela enorme matilha de cachorros infelizes, cuidava de perto daquela aventura diária de um ser já encurvado pelo tempo e pelo peso de suas lembranças. Essa foi sua rotina por anos.
Segundo eu soube um belo dia após muitos anos, ela pode substituir seu passeio diário pelas ruas do bairro por uma maravilhosa caminhada à beira mar. –“Deus que maravilha! Como antigamente. Após tanto tempo, Dona Eugenia pisava novamente no chão de sua terra afundava com gosto os pés na mesma areia e na mesma praia onde havia sido criada no litoral de Pernambuco. Estava de volta. Com lágrimas nos olhos ela sentia uma felicidade imensa.
Uma emoção difícil de explicar, mas na sua idade, ela já havia aprendido que tem coisas que não se explica se sente, e ela já passara há muito do período em que se precisa convencer os outros de alguma coisa. O que ela sentia era algo dela e assim estava satisfeita. Sua emoção ensimesmada lhe bastava.
 Que saudade enorme que ela sentira tantos anos longe de sua pequena vila. Olhava para as casas que continuavam simples, mas que depois de mais de 60 anos, o tempo tão longo havia carimbado em tudo um tom de modernidade. Agora havia carros, fios de telefone e antenas parabólicas, daquelas bem grandes. Mas o básico e fundamental estavam lá intactos: o mar, o céu, os coqueirais, o farol e aquele sol lindo, limpo sem nuvens que ajudava a pintar de verde o mar dos pescadores. Procurou com os olhos no horizonte as pequenas embarcações que como dantes lhe enfeitavam os quadros de sua memória. 
Sentou-se na areia da praia após ter andado algum tempo a chutar a água, sentiu-se como se tivesse novamente vinte anos. Sentou-se na areia extasiada e o fato de estar molhada até as calcinhas após ser atingida por uma onda mais forte não a incomodou. A brisa do mar suave e quente aguçara seus sentidos. Algo estava diferente dentro dela, sentia-se melancólica, e seus olhos se encheram de lágrimas mais uma vez. Parecia-lhe tudo tão vívido que até o cheiro da maresia parecia trazer com ele todos os outros cheiros que estavam presos em sua memória.
Deixou-se ficar por algum tempo ali sentada na areia acompanhando as embarcações que desenhavam a linha do horizonte. Pareciam pequenos pontos sem cor subindo e descendo com balanço frenético do mar. Seu coração saltava-lhe do peito rufando mais forte e descompassado. Tomada por tantas lembranças entregou-se ao passado com prazer. Se eram momentos felizes ou tristes, não importava. Eram seus era a sua história, e ela não se envergonhava ou se arrependia de nada. Sentia saudade apenas, muita saudade, e se pudesse viveria tudo novamente.
Seus olhos já sem brilho e cansados pelo tempo ardiam com a claridade. Mesmo assim, olhava ao longe tentando adivinhar as histórias daqueles pescadores que como seu pai, todos os dias entregavam a vida ao mar. O oceano costumava cobrar caro e roubar par si as vidas e os sonhos de quem não lhe tinha medo. Levava-os para o fundo e por capricho envolvia seus corpos para que adormecessem nas profundezas mais frias e solitárias. Às vezes o mar devolvia, às vezes não. Assim como nunca lhe devolveu seu pai.
Eugenia tinha apenas quatorze anos quando aconteceu, mas ainda hoje aos noventa ela se lembrava de ter ficado ali naquele mesmo ponto da praia. Dias e dias plantada perto da entrada do mangue, a olhar incansavelmente para o oceano, esperando que a embarcação de seu pai retornasse.
 Depois passou muito tempo a esperar que o mar cuspisse os corpos de seu pai e de mais quatro bons homens. O mar não quis, ficou com eles. A morte de seu pai foi sua primeira grande tristeza.
 Mar - Fonte de inspiração e de vida.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Cheiro de goiaba.

Fonte: Internet

Já viajavam há umas três horas e segundo o tio ainda faltava ao menos uma hora de estrada. Claudia adorava passear com seus tios, principalmente tia Rosa. Ás vezes, mas só às vezes, ela desejava que essa tia fosse sua mãe. Havia uma relação de cumplicidade entre as duas. Contava para a tia coisas que não contaria a ninguém.
-“Nossa era mais longe do que eu me lembrava! Será que Estela estará lá?” Estela era uma menina na faixa dos doze ou treze anos como ela, e também podia chamar tia Rosa de tia. Era ‘sobrinha de sangue’ como ela mesma fazia questão de enfatizar. –“Droga!” Pensou torcendo o bico. Neste fim de semana Claudia planejava ter a tia só para ela.
Estava completamente distraída quando seus pensamentos foram interrompidos por um grito ardido. Ao seu lado no banco de trás do carro viajavam seus dois primos menores. As duas crianças já demonstravam cansaço pelo longo tempo de viagem irritando-se mutuamente. Em sinal de protesto, o bebê havia se agarrado com vontade a cabeleira crespa do irmão irritante. O pequeno que não tinha mais que um aninho seguia atado à cadeirinha e se contorcia a um bom tempo tentando sem sucesso, livrar-se das investidas do irmão maior.
Apesar de toda sua força e ira o pequeno não conseguiu mais do que deflagrar belas risadas o que ele entendeu como sinal de aprovação. A partir de então arrancar cabelos seria seu novo e maior propósito, não importando quem fosse o dono da peruca escolhida. Com o tempo e infelizmente com treino constante, o pequeno viria a se tornar um grande escalpelador. Claudia ainda não sabia que se tornaria uma de suas vítimas prediletas.
Estavam quase chegando. A cidade apesar de pequena era bonita e próspera. Não havia edifícios como em São Paulo e também não se parecia em nada com a cidadezinha onde morava sua avó paterna. Lá, ainda existiam sítios e chácaras, charretes e vendinhas de uma porta só com engraçados estacionamentos para cavalos. Lá, as pessoas pareciam estar sempre dentro de uma pintura, movendo-se e falando em câmera lenta.
-“Qualquer cidade é uma metrópole se comparada a Juquiá!” Analisou observando as casas e as ruas distribuídas geometricamente em quarteirões: - “Por que será que em São Paulo os quarteirões não eram quadrados, mas triangulares, ovais e disformes?”
Concluiu que em São Paulo era realmente fácil se perder. Lembrou-se do pai que adorava ‘pegar um atalho’ e quase sempre a tentativa acabava em confusão. Eles ficavam perdidos andando em círculos ao som dos resmungos da mãe.
Neste momento, o tio estacionava em frente à casa da mãe de tia Rosa e anunciou a chegada com o dedo enfiado na buzina. Foram recebidos pela família com beijos, abraços e sorrisos.
Percebendo a presença de Claudia D. Clotilde, mãe de tia Rosa disparou: -“Ah! Que bom! Vocês trouxeram a Claudinha! Nossa menina você está comprida!” e cochichou em seu ouvido, provavelmente não tão baixo como ela imaginou: -“Já ficou mocinha? -” Não!” Respondeu Claudia corando e rezando para que ninguém mais tivesse ouvido. – “Que coisa mais chata! Parece minha mãe!”Claudia queria um buraco para se esconder. - “O que acontece com as pessoas depois que elas ficam velhas? Pensou enquanto Estela que ria da situação constrangedora lhe puxava pelo braço.
– “Vem vamos lá pros fundos.” Claudia ficou feliz por sair daquela situação. Bem, talvez Estela merecesse ser recompensada com um pouquinho de tia. Mas só um pouquinho...
Estela era o que Claudia considerava uma menina bonita, cheia de si e que agia de um jeito firme, o que com certeza a deixava mais bonita ainda. Claudia correu atrás da menina que seguia balançando longos cabelos loiros. Fugiram correndo dos adultos que não sabem ficar calados.
Ainda no corredor Claudia avistou o quintal. Estava como ela se lembrava. A casa era simples, muito simples, mas agradável e aconchegante.
Havia um pequeno gramado cercado por muitas flores, algumas ela conhecia: Margaridas, Rosas, Cravos e um canteiro grande de Onze horas se derramando por sobre a grama. As Onze horas eram suas preferidas. Claudia não entendia o que fazia essas pequenas florzinhas abrirem perto da metade do dia. Mas acontecia, e por incrível que pareça, elas não erravam nunca. Parecia mágica.
As flores, rosa bem forte, eram lindas e pareciam estar em festa.  -“Quando voltar peço a mamãe para plantar Onze horas no nosso jardim, talvez D. Clotilde não se incomode em dar uma mudinha.”
No quintal havia ainda várias árvores frutíferas que a tia da outra vez fez questão de mostrar e dizer o nome delas, Claudia não se lembrava de todas, mas algumas ela sabia sim até porque, também tinha pomar na casa de sua avó em Juquiá.
Pé de ameixa, abacateiro, figo, mangueira, jabuticabeira... -“Que pena que não tem jabuticaba!” Pensou Claudia procurando aquelas bolinhas pretas e doces pelo tronco da árvore. –“Ah! que bom! A goiabeira tá carregadinha! – “Será que vão achar que eu estou muito grande para subir no pé?  Agora tá um tal de dizer: -Você tá grande pra isso, tá grande prá aquilo. E tem um monte de coisas que eu quero e me dizem: - “Você ainda não tem tamanho pra isso não menina! Você ainda precisa comer muito feijão antes de pensar que já pode usar esse tipo de roupa, falar desse jeito, ler esse livro, assistir esse filme”...
Será que demora muito pras coisas ficarem mais claras ou os adultos se acertarem com o que pode e não pode? Claudia percebia que os limites variavam de família para família e até mesmo entre o pai e a mãe. Naquele momento o que ela queria mesmo, era saber se podia subir no pé de goiaba e comer a vontade sem que ninguém viesse brigar com ela. De mais a mais chatear sua tia não estava nos seus planos.
Claudia virou-se para Estela e disparou: -“O pé de goiaba tá carregadinho será que sua avó acharia ruim se agente subisse nele? A resposta de Estela foi no mínimo inesperada: - “Ai não... Eu não quero subir não, isso é coisa de criança!  
Estela estava mesmo com um ar diferente demonstrando deliberadamente que já era mocinha e que subir em árvores não estava em seus planos. Lançou um olhar de reprovação, quase de desprezo sobre Claudia como se a pequena diferença de idade entre as duas, Claudia era mais velha, tornasse o ato de subir em árvores o mais completo absurdo.
Claudia irritou-se– “Subir em árvore é gostoso e meu pai ainda sobe tá?” Alfinetou. “Quem disse que subir em árvore é coisa de criança? Ihhh! Que será que deu nela? Bem que eu sabia. Essa menina é uma chata mesmo, não mudou nada! Quem ela pensa que é?”
Tia Rosa da varanda anunciou o almoço e sugeriu que Claudia, Estela e os primos almoçassem juntos na mesa da varanda.  Durante o almoço Estela mantendo ares de adulta olhava fixamente para Claudia. Confessou que tinha um segredo para contar e pediu a ela que jurasse não contar a ninguém. E foi enfática–“Jure pela alma da sua mãe mortinha! Proferiu Estela. – “Tá bom eu juro.” Disse Claudia, e jurou porque achou que se não jurasse a menina não contaria e ela já estava curiosa demais.
Findo o almoço sentaram-se na frente da casa para conversar, realmente Estela estava cheia de histórias e todas repletas de façanhas com meninos...  –“Ai meu Deus que doida! Se a mãe dela descobre! Será que ela não tem medo?” Claudia descobria com desconforto e inveja que Estela possuía a coragem e a ousadia que ela com certeza não tinha.
Andava de namorico com os meninos de sua escola e, segundo ela, já havia beijado. – “Meus Deus e a mãe dela nem sonha! Será que era verdade?” Todas as meninas de sua idade sonhavam com o primeiro beijo e com Claudia não era diferente! -“Essa menina sempre foi metida e agora deve tá inventando só pra me impressionar”.
Claudia era uma menina simples e tímida também. Não se sentia nada a vontade na frente dos meninos, era insegura e se achava feia. Acreditava lá em seu íntimo que morreria solteira porque nenhum menino nunca se interessaria por ela. E já que era assim os observava a distância. De preferência uma longa distância.
Estela apesar de mais nova era mais esperta, menos superprotegida e já havia percebido que suas proezas estavam causando um forte impacto em Claudia que ouvia os detalhes com cara de espanto e interesse.
Claudia segurava nas mãos um anelzinho que Estela jurava ter ganhado do namoradinho da escola quando foram surpreendidas pelo quicar de uma bola dentro do quintal. Quicou e foi parar juntinho dos pés de Claudia que nem sequer se mexeu enquanto a bola parava ao seu lado.
Correndo atrás da bola surgiu um menino de mais ou menos quatorze anos. Estava suado da correria de um jogo que pelos gritos que podiam ouvir de onde elas estavam era bastante disputado. Para Claudia a presença inesperada daquele menino foi desconcertante, já que meninos eram o tema da conversa. Sentiu seu rosto corar e sem graça nem se mexeu para pegar a bola que lhe batera nos pés. Apenas sorriu para o garoto.
Estela, entretanto nem se abalou, levantou-se tranquilamente e mais rápido que Claudia percebesse já estava em pé ao lado do portão e sorrindo entregava a bola ao garoto. O menino por sua vez sorriu com um ar maroto e foi embora batendo a bola no chão. - “Que bom que já foi. Pensou Claudia, meio chateada por não ter tido tempo de pegar a bola e entregá-la ao garoto. Como eu sou boba! Se fosse eu, era capaz de tropeçar e cair com bola e tudo. Como eu sou idiota”!
Quando o garoto saiu de suas vistas Estela, voltou andando para a varanda na direção de Claudia rindo e balançando os dedos em sinal de perigo. Batia freneticamente o dedo indicador nos dedos polegar e médio, que se encontravam unidos. Rindo maliciosamente perguntou: – “Você viu que lindo? E tem o olho azul! Claudia riu e fingiu concordar com Estela para não parecer infantil, mas intimamente ela pensou. – “Grande coisa que tenha o olho azul nem ligo! Até parece que a cor dos olhos quer dizer alguma coisa.”
- “Toma, pegue o seu anel” disse Claudia devolvendo-lhe o suposto presente.
Menos de um minuto depois, para surpresa das duas, e desespero de Claudia, o menino voltou. –“Estamos jogando vôlei... Vocês querem jogar também? Bem, primeiro oi né? Meu nome é Carlos Eduardo, que falta de educação a minha, nem me apresentei! E vocês como se chamam?
Estela mais que rapidamente e com um sorriso maior que o rosto adiantou-se apresentando a si mesma, e também à Claudia como sendo sua prima de São Paulo.  O garoto então se dirigiu a Claudia que continuava sentada dizendo –“De São Paulo é? Por isso nunca te vi por aqui.” Mas de você acho que me lembro... Só que menorzinha”. Carlos  Eduardo dirigia-se a Estela, mas ainda mantinha os olhos em Claudia que sorrindo timidamente informou: -“Já faz tempo que eu estive aqui, mas não é a primeira vez que venho”. O menino concluiu a conversa dizendo: – “Me mudei novamente para cá faz pouco tempo, não tem um mês, vai ver é isso. Mas e aí vamos jogar?”
Estela respondeu já ultrapassando o limite do portão. - “Vamos sim”! E Claudia lembrou: -“Bom, então Estela, vai indo que eu aviso tia Rosa e vou em seguida”. - “A gente te espera! Disse o garoto. Claudia voltou-se estranhando a gentileza e disse. – “Não precisa, eu vou em seguida! Vai ser rápido, podem ir.
Claudia corria pelo corredor imaginando o que poderia fazer para não ter que atravessar aquele portão. O que ela poderia fazer para não ir. Entrou em casa, foi ao banheiro. Lavou o rosto e olhou-se no espelho arrependendo-se de te saído de casa do conforto de seus livros e do seu quarto. A salvação seria tia Rosa dizer que não era recomendado que as duas fossem brincar com estranhos...
Após comunicar a tia sobre o convite, Claudia voltava a passos lentos pelo corredor pensando: - “Bom então tá né?” –“Puxa como tia Rosa é boazinha, conhece muito bem o menino e ainda por cima gosta dele.” Edu era como tia Rosa o chamava. – “Ah que bom o Edu está aí, já voltou com a família! Que coisa boa não é mãe?” Dirigindo-se a D. Clotilde. Que da pia onde passava café abanou a cabeça afirmativamente.  - “Lógico que vocês podem ir lá brincar.” A tia achou o máximo que as duas fossem a casa dele. E ainda recomendou que ele dissesse a ele que fosse vê-la antes de voltarem a São Paulo.
Claudia estava absorta em seus pensamentos e estava quase no portão da casa do menino quando deu de cara com Estela. – “Credo que demora! Já ia te buscar! Olha você entra naquele time.” Mandou Estela.
Sem alternativa Claudia colocou-se no time determinado e não deixou de notar que Estela estava no time de Edu. – “Que menina oferecida. Ainda bem que eu não sou assim, no fim das contas ele deve estar rindo dela. É assim que os meninos fazem, dão corda e depois quando estão sozinhos morrem de rir das meninas oferecidas. Comigo ninguém vai fazer isso.”
Muitos passes, saques, cortadas e principalmente, muitos pontos depois Claudia já nem se lembrava da sensação de medo que sentira ao entrar ali. Estava se divertindo muito, pois seu time estava dando um banho nos adversários. Ela podia não ser boa nessa coisa de meninos, mas de brincar ela entendia e soltou-se. No grupo como um todo havia algumas garotas da vizinhança e pelo menos mais dois meninos que com certeza não tinham a beleza nem a graça de Carlos Eduardo.  
Mais alegre e mais confiante já que muitos dos pontos de seu time foram marcados por ela, Claudia já não se intimidava quando Edu sacava a bola com tudo pra cima dela. Quanto mais ela acertava um movimento mais ele vibrava e gritava: -“BOA!!” Como se fossem do mesmo time. Também não pode deixar de notar que aquele menino, bonito de fato, e a quem Estela estava fazendo tudo para chamar a atenção, na verdade não tirava os olhos dela.
- “Por que ele está fazendo isso? Será que quer tirar onda com a minha cara? A Estela tá fazendo papel de idiota, mas eu não sou idiota. Ninguém vai me fazer de boba!” – “Deixa ele...” Aos poucos sem que Claudia percebesse a coisa mais interessante do jogo era provocar Eduardo cavando pontos em cima dele.
O tempo passou muito mais rápido que o previsto e Claudia já achava que este era um dos melhores finais de semana de sua vida. Já escurecera e o jogo chegava ao fim com uma vitória esmagadora do time de Claudia.
Sentaram-se todos para descansar e beber água. Já iam despedir-se quando alguém teve a idéia de brincar de esconde-esconde. Estela que não conseguira impressionar o menino e ainda por cima tinha perdido o jogo, não demonstrou muito entusiasmo como convite. Mas Edu foi veemente e insistiu. Enfim todos aceitaram.
Claudia argumentou que não conhecia o lugar como os outros e teria dificuldades para encontrar bons esconderijos e assim seria prejudicada. Houve uma tremenda algazarra para dizer que sua desculpa era esfarrapada e que, portanto deveria brincar assim mesmo.
Edu interveio dizendo: - “Nas duas primeiras rodadas você fica comigo e a gente se esconde juntos, eu te mostro os lugares e depois você se esconde sozinha tá bem? Surpresa com a proposta e feliz de ver a cara de espanto de Estela, Claudia aceitou. Estava achando aquele menino diferente dos outros e ele a tratava de um jeito diferente também.
Ver a cara de Estela quando Edu falou aquilo foi delicioso. Ela não estava fazendo nenhum esforço e aquele menino demonstrou desde o começo sua preferência por ela. O ego de Claudia estava sendo acariciado. Aconteceram uns risinhos maliciosos também. Mas Claudia fez questão de desconsiderá-los. Ela estava feliz, nunca se sentira cortejada tão acintosamente em sua vida. As atitudes de Edu não deixavam dúvidas: ele havia gostado dela. – “Talvez ele me ache bonita.” Sorriu para Edu com uma segurança que não sabia possuir.
Amanda uma menina que morava por ali foi sorteada para ser a primeira a bater cara, e o pique seria o muro da casa em frente a de D. Clotilde. Toda a rua era considerada como local permitido para esconderijos, não importava se era área interna ou externa, seriam permitidos todos os quintais que conseguissem entrar.
-“Nossa como é gostoso morar no interior” Pensou Claudia surpresa com tamanha liberdade.
Um, dois, três e correria geral... Cada um para um lado. Eduardo puxou Claudia e correram juntos de mãos dadas. Naquela hora ela o achou ainda mais lindo. Seu cabelo bem loirinho e há muito precisando de corte já lhe batia na testa escondendo os olhos. Quando acontecia ele fazia um movimento rápido jogando todo o cabelo para trás.
Ele sabia trilhas e as utilizou para despistar os outros. Foram pela frente da casa entraram por um terreno baldio deram uma volta enorme. Agachando-se e se esgueirando pelos cantos. – “O que será que ele pretende?” Fosse o que fosse Claudia iria com ele.  Pularam o muro que separava o quintal de D. Clotilde daquele terreno baldio. Claudia nem sabia como tinham chegado até lá. Naquele momento gelou. – “Aqui não! Minha tia pode achar ruim! Falou baixinho – “Deixa de ser boba” disse Edu. - “A gente sempre se esconde por todos os quintais e ninguém liga. Vem, vem logo!” Claudia se deixou conduzir.
Foram para os fundos do quintal e Eduardo ia diretamente para a goiabeira. Ele nem perguntou se ela conseguiria subir era como se tivesse certeza que sim. Subiram o mais alto que puderam. Eduardo olhando para ela disse com um sorriso maroto: - “ Não vão achar a gente aqui tão cedo. Vão cansar de procurar!” Pudera! A copa da goiabeira estava envolta pela copa da mangueira de um lado e do abacateiro pelo outro. Provavelmente se olhassem para o alto ainda assim não os veriam.
Que menino era aquele? Gostava de brincar, subia em árvore e ainda levava ela junto. Era tudo muito confuso sentia-se atraída pelo menino e mesmo assim não se sentia infantil por saber subir em árvores. De alguma forma ele parecia gostar que ela fosse moleca. Desde o jogo ele demonstrou isso. Claudia percebeu que com Edu ela não precisava fingir ser quem não era. Ele era diferente dos meninos que ela conhecia. E ela provavelmente era diferente das meninas que ele conhecia. “Poderiam ser os melhores amigos”. Pensando assim, Claudia subiu na árvore com a rapidez de um menino.
No fundo sabia que ele havia usado de um subterfúgio para ficarem sozinhos. Claudia estava confusa e feliz.
Ficaram em silencio quando viram um grupinho que já havia sido encontrado passando ao longo do muro provavelmente procurando por eles. Eduardo colocou-se em sua frente e num gesto rápido lhe tapou a boca com a mão. Ao fazer isso seus corpos ficaram tão próximos que ela pode sentir não só sua respiração, mas também as batidas do coração de Eduardo bem junto do seu. Sentia o cheiro dele se misturando ao cheiro das goiabas que perfumavam o ar.
Claudia ficou congelada, parecia que o mundo inteiro tinha parado. Não saberia explicar o que estava sentindo. Queria que o tempo parasse. Não havia mais tia, nem Estela nem todos os meninos e meninas chatas de sua escola. Não havia pai nem mãe. Havia apenas aquele menino respirando quase em cima dela. Tão perto que ela via sua imagem nos olhos dele. Claudia pode sentir o cheiro de seu hálito e ver que os olhos de Eduardo procuravam sua boca e seus olhos como se lhe pedindo permissão.
Ninguém precisou explicar o que ele queria e Claudia suavemente empurrou Eduardo dizendo: - “ Não... não”.  Havia sido tudo muito rápido. Claudia não estava pronta e Eduardo gentilmente afastou-se e sorrindo disse: - “Espera”. E num estalo deu-lhe uma ‘bitoca’ roubada. Rindo, subiu como um gato mais alguns galhos e voltou com uma enorme goiaba não muito madura, daquelas no ponto para se comer sem medo dos bichinhos.
Dando uma mordida gostosa Edu colocou a goiaba na boca de Claudia e esperou que ela desse uma bela mordida. Foi um gesto meigo. Dividiram a goiaba até o fim. A goiaba fez as vezes daquele beijo não dado.
Comeram com gosto muitas goiabas e também riram muito dos outros que passaram muitas vezes de um lado para o outro sem olhar para cima. Ficaram amigos pra sempre, daqueles que são íntimos e cúmplices. Eles não sabiam ainda, mas um dia seriam namorados também.
Claudia desceu daquela goiabeira mais contente com sua idade. Sabendo que ela tinha a liberdade para escolher quando seria hora para beijos. Estava certa que agora ainda era hora de brincar e subir em árvores, independente do que pensavam pessoas como Estela ou quem quer que fosse.
Naquele final de semana ela aprendeu que existem pessoas que sobem em árvores pra sempre!  Se tiverem vontade até ficarem velhinhos como seu pai. Ou, até quando seus corpos permitirem.

sábado, 4 de dezembro de 2010

"Três Vezes Maria"

A todas as mulheres, inclusive as que ainda não nasceram... 
Ela corria para chegar ao ponto antes do microônibus tentando se equilibrar sobre as sandálias. - “Devia ter colocado aquela mais velhinha pelo menos não ficaria saindo do meu pé”. Ai que saco! Qualquer hora eu caio e aí sim fica pior. Como vou trabalhar com um pé quebrado? Nossa, credo, deve doer muito!” Lembrou da irmã sofrendo por bastante tempo. A imagem de sua irmã, sentada no sofá com a perna numa cadeira, reclamando do gesso viera como um alerta de cuidado em sua cabeça. – “Quando voltar encosto essa sandália num canto”.
     De um salto subiu na lotação, e com dificuldade alcançou o último dos degraus da escada. Segurando-se fortemente, procurou com os olhos o motorista, se aquele infeliz prestasse atenção aos passageiros que entram ou saem do coletivo teria visto que Maria lhe lançara o seu olhar mais revoltado. Procurou em sua volta olhares que lhe dessem apoio, talvez se tivesse encontrado algum, teria reclamado em voz alta. Estava brava. Ela nem sequer havia saído dos degraus e aquele homem horrível e sem educação já havia pisado ferozmente no acelerador.
     Estava atrasada. – “Inferno, como está cheio!” Falou em voz baixa. Já haviam andado alguns quarteirões e ela ainda estava em pé próximo a escada de entrada. – “Ainda bem que não preciso fazer aquela viagem todos os dias”. Era diarista e no momento só estava com três casas para faxina por semana. Isso significava também que o dinheiro estava curto e que a dívida no mercadinho estava cada dia maior. – “Pensando bem seria melhor ter que passar por isso todos os dias e levar mais dinheiro para casa”.
     Sentia-se com sono e cansada, naquele momento, um tanto ultrajada também. O homem que entrara um ponto depois do seu, ficava mais próximo a cada movimento mais forte do veículo, Maria começava a sentir a respiração dele em sua nuca e aquilo a estava deixando completamente desconfortável. Mais um solavanco e pronto, estava confirmado: aquele sujeito estava se aproveitando da situação. O canalha esbarrava sem querer a mão em suas nádegas. –“Que imbecil! O que eu faço? Como saio daqui?” Pensou quase em voz alta.
     Fez um movimento estudado tentando abaixar-se e passar entre a senhora gorda a sua esquerda e uma estudante a sua frente, essa por sua vez, carregava uma enorme mochila nas costas. Tão grande que com certeza ocupava o lugar de uma pessoa. Bem, pelo menos o lugar de uma pessoa pequena como Maria.
     Maria não iria permitir que aquele homem nojento se aproveitasse dela, e como não conseguira sair do lugar, decidiu usar o seu famoso pisão no pé. Afinal, talvez tivesse escolhido a sandália certa. O salto era bem fininho e com certeza aquele tarado sentiria dor no local atingido por dias. Como era de se esperar em uma situação destas, ele torceu o nariz e engoliu em seco, mas nem sequer reclamou. Calou-se declarando assim sua culpa. Acostumado a arriscar-se, o sujeito sabia que se falasse algo a coisa se complicaria e ele estaria realmente encrencado, afinal existe um certo “código de conduta” nos coletivos.
     Depois do microônibus ainda viria o trem. Pelo menos lá ela não iria chacoalhar tanto. Estava ficando enjoada e ainda faltavam uns quinze minutos para chegar ao seu destino. Maria começava a suar frio, não se sentia bem e no seu íntimo imaginava com preocupação a próxima etapa de sua viagem que se daria de um extremo ao outro da cidade.
     -“Tenho que melhorar. Talvez no percurso entre o final da lotação e a plataforma. É ao ar livre, e assim talvez quem sabe essa horrível sensação de fraqueza passe”. Pensou enquanto apertava os passos já livre da tortura que havia sido sua viagem até então.
     Desde muito pequena sentia-se incomodada ao ficar em lugares muito cheios e quando estava nas conduções, o que a aturdia, não era só a quantidade, mas a enorme proximidade a que as pessoas se viam obrigadas a estar. Tocando-se, se roçando. Gostaria de escolher quem fosse roçar nela afinal.
     Andara muitos passos, já quase adentrara o trem e ainda sentia-se mal, parecia estar piorando. Maria sabia muito bem o motivo de seu mal estar: estava grávida. Novamente.
    Se não acreditasse que uma criança é sempre um presente divino Maria não estaria sofrendo tanto. Sentia-se culpada por que seu único desejo, desde que soube da gravidez, era não estar grávida. Faria qualquer coisa para não estar grávida. E desejava também que aquela criança não pudesse lhe adivinhar os pensamentos. Havia tomado todos os remédios e feito todas as simpatias que lhe haviam ensinado. Mas dessa vez, não dava certo. Essa criança tinha uma teimosia que já se fazia anunciar.
     Dorival não queria mais nenhum filho. E ameaçou abandoná-la caso engravidasse outra vez. Meu Deus, ela havia tomado tanto cuidado, mas aquele infeliz que ela chamava de marido quando vinha bêbado pra casa... “Aí não tinha jeito! Tinha que ser como ele queria”. Infeliz ele, infeliz ela. –“Porque não tinha ido embora pra casa de sua mãe? Devia ter “pego as crianças e ido embora”.
     Apesar de tudo Maria amava Dorival e estavam juntos há oito anos. E ela sabia muito bem que apesar das bebedeiras, das dificuldades, mesmo sabendo que todas as necessidades que estavam passando eram de certa forma culpa de Dorival. Ela o amava.
     Maria sabia que sem ele, não seria feliz.  Não haveria outro homem para deixá-la tão sem defesas como seu Dori a deixava. Quando chegava por trás passava os braços em volta dela e começava a cheirar seu pescoço... Assim sem aviso. Mas quase todos os dias! -“Eta homem fogoso meus Deus”! Riu-se ao imaginar Dori fazendo o que ele sabia fazer de melhor: amor com ela.
    “Daí olha só o resultado, pensou. “Grávida outra vez”. Neste momento um gosto horrível subiu-lhe a boca. O trem estava tão cheio quanto a lotação. –“Ai meu Deus vou ter que descer aqui mesmo! Onde é que eu estou?” Não havia chegado nem a primeira de doze das estações que percorreria. O suor gelado anunciava a todos a sua volta que algo estava errado. Olhava para fora e só via concreto, o ruído normal de pessoas falando e do trem empurrando o vento no túnel tornava-se ensurdecedor. Empurrou a todos que estavam a sua frente e como pode chegou até a porta.
     Maria perdeu a cor. O mundo de Maria perdeu a cor. Desmaiou no vagão lotado.
Acordou minutos mais tarde num pronto socorro que não tardaram a lhe informar o nome. A enfermeira queria saber se havia alguém a quem ela quisesse avisar, alguém para buscá-la.  E ainda rapidamente para tentar acalmá-la disse-lhe num tom muito feliz: - “Ah! É claro o seu bebê está muito bem viu? Onde você está fazendo o pré-natal? Parece que você precisa se alimentar melhor menina”. Pobre Maria, já não ouvia mais nada, apenas mantinha os olhos fixos na enfermeira que continuava a discorrer sobre todos os cuidados que precisaria tomar de agora em diante.
     Não estava feliz e sabia que já não havia mais como fugir do problema. Perdera o dia de trabalho. Precisava avisar a patroa que estava doente, afinal teria o atestado e deveria ir para casa, foi-lhe recomendado repouso pelo resto do dia. E ainda hoje teria que contar sobre a gravidez para Dorival. Ainda não tivera coragem.
     Sim. Era isso, iria para casa e aproveitaria o fato de que neste horário Dorival ainda estaria sóbrio. “Seria a melhor hora para dar a notícia!” E ainda por cima, para piorar as coisas, não tinha dinheiro para passar no açougue e dar conta da mistura. “E agora o que faria de comida?” Pensou aflita, esquecendo-se que esse era de fato o menor de seus problemas.
     Ainda bem que nesse horário as crianças estavam na creche e só as buscaria à tarde. Daria tempo de contar ao marido e ainda controlar a situação. Talvez até fizessem as pazes antes de buscar os pequenos –“Meu Deus não é possível que ele não entenda. Afinal eu não fiz o filho sozinha! Mas ele foi tão claro quando disse que iria embora. E se ele fosse mesmo embora o que ela faria da vida?”. Ela com duas crianças pequenas e mais um na barriga.
     -“Que droga de vida. Porque não me cuidei mais? Homem de merda! Só sabe reclamar! Por que é que ainda fico com ele?” Lembrava-se de todas as brigas que já tivera com Dorival quando engravidou do segundo filho que agora tinha um ano e meio. Por pouco ele não fora embora.
     Às vezes não entendia a si mesma. Como poderia amar um homem assim dessa forma meio maluca? Sua irmã não gostava de Dorival e dizia umas coisas que a deixavam confusa e ela preferia não dar atenção.  Maria era incapaz de enxergar o egoísmo cínico de Dorival e preferia ficar afastada da irmã para não ter que lidar com o que poderia ser verdade.
     Acreditava que no fundo Dorival era gente boa e que a amava também. Afinal ele sabia como agradá-la e acende-la como nenhum outro. Além do que, ela acreditava em sua fidelidade. Ele nunca a havia traído e também nunca batera nela. Seu único defeito era a bebida. Se não bebesse era um santo homem.
    -“Ainda não nasceu o homem que vai encostar um dedo em mim. Não, em mim não! Que não sou besta feito a Aparecida. Oh! mulher tonta! O homem apronta, é o maior galinha da cidade e ainda bate nela. E ela tá lá sempre pronta a perdoar. Ah não, traição não perdôo”. Pensou cheia de si e convencendo-se que seu Dori era diferente.
    -“Não ele não irá embora! Vai brigar, falar, xingar, ameaçar mas no fundo vai ficar comigo e depois agente faz as pazes. E olha só, como já tô grávida mesmo, vamos fazer um amor despreocupado, gostoso”. Sorriu maliciosamente desenhando na mente o corpo nu de seu homem. –“Como é bonito!”
     Estava quase chegando seu coração batia cada vez mais rápido, teve medo de passar mal novamente. –“Acho que vou passar na casada Cleuza antes, tomo lá um café, uma água, jogo um pouco de conversa fora e assim me acalmo”. -“Incrível ter conseguido esconder a barriga tanto tempo”. Já estava de quase cinco meses e ninguém havia notado ainda. Nem mesmo a amiga Cleuza.
    -“Acho que tô muito magra”. Apertava os passos acelerando a caminhada, maldizendo a sandália e a própria vida. Cruzou algumas pessoas no caminho e se perguntou se talvez eles pudessem imaginar o que lhe esperava em casa. Não gostava de discussões e odiava brigar com Dorival. Odiava ainda mais quando brigavam na frente das crianças.
     Pensou nos filhos, pensou na falta de dinheiro, pensou na patroa que ficara a ver navios. Cumprimentou a velhinha da quitanda. –“Pobrezinha essa sim sofre. Já não bastou criar os filhos e agora tem de pelejar com um neto drogado. O infeliz até bate na pobre para roubar o seu dinheiro”. –“Oh vício maldito!”. Pensou em voz alta
     E pensando assim ponderou - “Ainda bem que Dorival só bebia. Ah! Maldita cachaça!”.
     Estava quase na casa da Cleuza. Quando chegou ao portão estranhou a janela aberta, havia coisas espalhadas no quintal, mas não via a amiga. -“Vai ver está nos fundos pendurando roupas no varal.” O quintal de terra, cheio de pequenas plantas fortuitas denunciavam a falta de capricho de Cleuza. –”Se eu tivesse um quintal assim deixava bem bonito” pensou Maria. Observando os brinquedos espalhados e cheios de lama da última chuva revoltou-se. “O mulher relaxada essa minha amiga!” “Vou puxar a orelha dela, assim não ensina nada de bom a essas crianças” Em silêncio sorriu, lembrando-se do jeito moleque de sua amiga mais querida.
     Contornou toda a casa e quando já estava chegando à porta da cozinha estranhou ao ver encostada na parede ao lado do tanque uma bicicleta igualzinha a de Dorival. Seu corpo todo estremeceu. Não era igual, era a bicicleta dele. A idéia que lhe invadiu a mente foi tão terrível que tentou afastá-la, sem sucesso.
     Sentia com o peito, com o coração, mas a mente não se pronunciava. Maria não estava pensando mais. O pânico havia tomado sua alma. –“Será? O que Dorival estaria fazendo ali? Naquele horário?” Teve ímpetos de chamar por Dori ou por Cleuza, bem alto. Não o fez tampouco, o corpo tremia convulsivamente e a voz não lhe saiu. O coração não tinha mais ritmo e parecia que ele lhe batia pelo corpo todo.  
     O coração de Maria havia migrado de seu peito.
     Em sua mente surgiu a imagem de Dorival, seu sorriso, seu jeito de olhar por trás dos cabelos. Veio também a imagem deles dois novinhos, namorando.      -“Ele é meu homem, meu marido. – “Não, não pode ser”...
     E assim, sem que Maria percebesse em sua alma se fez total silêncio. Implantava-se a total ausência de cor, de vida e de razão.
     Com a respiração presa, o mundo havia ficado em silêncio, era como um desmaio novamente. Era o nada. O silêncio denunciava o crime de Dorival.
     Mais um passo... A cozinha em bagunça... Uma lâmina, um gemido. Um grito: -“MARIA!!!” Seus olhos só viam o brilho da lâmina. Nem sequer sabia quem havia gritado. Seu peito brandia com um gemido de dor. O reflexo da luz na lâmina da faca cegou seus olhos. Sentiu uma dor aguda e o cheiro de sangue.
     Sentiu um soco dentro de seu ventre. Um soco tão forte que a tirou do estado de torpor em que havia entrado. Era a primeira vez que aquela criança se mexia. E ao mexer-se salvou sua mãe de uma tragédia quase consumada.
    Maria quedou-se parada na porta da sala olhando fixamente para Dorival e Cleuza. Nus, suados e com os olhos esbugalhados de medo e surpresa.  Maria em pé estática segurando aquela faca que encontrara no caminho. O cheiro de sangue que Maria havia sentido era dela, cortara a mão sem perceber. Cortara-se de dor e tristeza no mesmo momento em que flagrou os carinhos que eram dela no corpo de outra.
     O ódio e o torpor que lhe tirara os sentidos a fez apertar a lâmina da faca na própria mão. Instinto, reflexo impensado. Aplacado pelo movimento brusco daquela criança que trazia no ventre. Sentiu a cumplicidade de uma mãe com seu filho. E nesse momento percebeu o quanto amava aquela criança.
     Dorival não a merecia. Não merecia Maria, nem os filhos que ela havia lhe dado. Muito menos esse que ainda estava em seu ventre.
     No flash desencadeado pela lâmina daquela faca, Maria acordou. Saiu correndo precisava buscar as crianças. Já não havia mais nada para ela ali. Precisava salvar-se e salvar seus filhos
     Sentada num banco da rodoviária Maria fitava seus filhos e sentia-se mais velha, mais madura e mais mãe. Ao lado, poucas sacolas para poucas roupas. Poucos pertences para muitas histórias. Na bagagem muita dor.
     Ela que tanto rejeitara aquela barriga, agora se sentia tranqüila, mais forte, mais gente. E muito mais preparada para enfrentar as dificuldades que com certeza viriam.
   –“Sou muito mulher!” pensou enquanto o ônibus estacionava em sua frente. Ela com seus dois filhos pequenos e aquele que ainda chegaria.
     Ela agora era três vezes mais Maria.