terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Dona Eugenia - Parte 1

Este conto será postado  em capítulos e espero que acompanhem. 
Obrigada, Sandra.
                              
Estava só.
Era a planura e solidão da vida.
Era este o peito varonil do mundo.
E amei o sistema de tua forma reta,
a extensa precisão de teu vazio.

"Pablo Neruda - Canto Geral"

             Conheci Dona Eugenia quando era criança e tenho ótimas recordações dela, morava no fim da minha rua e sua casa era a mais simples de todas. O que mais chamava a minha atenção era o jeito simples e a quantidade de filhos e netos que ela tinha. ‘Seu Olinto’, marido de D. Eugenia era um velhinho aposentado que falava pouco e passava o dia inteiro sentado em um banquinho na frente de sua casa. Quando alguém implicava com sua ociosidade ele ria e dizia: -“Se apoquente não filho, que to trabalhando... Agora sou bancário!” E com um ar maroto apontava o banquinho, seu companheiro fiel de fazer nada o tempo todo.
A casa nem era tão pequena, mas me lembro bem que não tinha forro. De qualquer cômodo em que se estivesse dava para ver o telhado. Era pintada de uma cor que não existia, não era rosa nem cor de terra, e eu não sei definir ainda hoje, que cor era aquela. Tinha um jardim gigante e desorganizado, e no quintal muito varais que estavam sempre cheios de roupas coloridas e de todos os tamanhos denunciando que lá morava uma família realmente numerosa.
De todos os filhos só a caçula estudava e estava na minha classe, minha querida amiga Adélia. Para mim era estranho saber que uma criança podia ter tantos irmãos e sobrinhos sendo que Adélia era bem mais nova que alguns deles. Como filha única eu achava isso tudo incrível e muito legal, pois ao contrário de mim na casa dela havia crianças para brincar o tempo todo.  Não demorou muito para que eu percebesse que brincar era algo que não fazia parte da rotina de Adélia, pois com freqüência ela tinha obrigações que eu nem sonhava que uma criança pudesse ter.
Brinquei muitas vezes naquele quintal e nutri em mim enorme curiosidade acerca daquela família, de seus costumes e sotaque tão diferentes do meu. Adorava os bolos e o delicioso chá gelado que estavam sempre prontos para refrescar-nos nos dias de verão.
Adélia respeitava seus irmãos e vez em quando, um deles lhe dava uns cascudos. Joãozinho ou Daniel lhe compravam os cadernos para escola, roupas quem lhe dava era Mariazinha, a mais velha de suas irmãs, geralmente eram usadas e vinham de uma sobrinha mais velha que ela. Os raros passeios eram possíveis graças a sua irmã Dirce. Uma jovem boazinha e muito bonita que era igualzinha a D. Eugenia em uma foto que estava sobre a televisão. A foto já estava amarelada, mas dava para ver a beleza de D. Eugênia na sua juventude. Com certeza Dirce puxara a ela. 
Quando resolvi contabilizar vi que eram nove os filhos de Dona Eugênia, Adélia era a caçula com dez anos naquela época e três a mais que eu. Contei mais de vinte netos e pelo menos uns quinze bisnetos
Crescemos. Um a um os filhos de Dona Eugenia que ainda eram solteiros foram se casando. Alguns iam ficando com as famílias por ali mesmo, construindo no quintal até não caber mais nada. O jardim foi sumindo aos poucos. Eu fui estudar longe em outra cidade e senti muita falta da minha rua e das pessoas que compartilharam a melhor parte de minha vida, a infância. Adélia também se casou muito cedo pelo que eu soube, ela ‘pegou barriga’ e teve que se casar. Faz muitos anos que não a vejo.
Confesso que através da presença de Dona Eugenia e Adélia em minha vida eu aprendi bem cedo que nem todas as crianças sorriem o tempo todo, assim como nem todos os velhinhos também. Aprendi que presentes de Natal vêm somente para alguns, e mesmo achando que talvez Adélia merecesse mais que eu, Papai Noel sempre pulava a casa dela. A velhice de Dona Eugenia e de ‘Seu’ Olinto me fez perceber ainda muito cedo que as diferenças sociais marcam negativamente a vida das pessoas mais humildes. A falta de estudo e de oportunidades muitas vezes determinam histórias e diluem sonhos. Talvez nem Deus saiba, mas por algum motivo torpe, algumas pessoas nascem para serem tristes.
‘Seu’ Olinto, morreu aos noventa e nove anos revezando seus ossos entre o seu banquinho no portão e o hospital já que seu fígado havia há muito sido consumido pelo álcool. Dona Eugênia vinte anos mais nova parecia ter uma força e uma saúde invejável e seu corpo ao contrário de sua mente, teimou ainda bastante com o tempo.
Dona Eugenia viveu uma vida longa às voltas com sua enorme família e eu acostumei-me a encontrar com ela logo de manhãzinha  quando   saia   para     estudar.  –“Oi menina... Vai pra escola? Eu já vou andar um pouquinho... Dar umas voltas no quarteirão. A mãe tá boa?” Não esperava a resposta e seguia sorrindo e cumprimentando as pessoas que cruzavam seu caminho. Levava consigo um séquito de cães vagabundos e vira-latas. Os seus, os dos vizinhos e os enjeitados do bairro também, de uma forma ou de outra D. Eugenia dava um jeito de alimentar a todos. Parecia que aquela enorme matilha de cachorros infelizes, cuidava de perto daquela aventura diária de um ser já encurvado pelo tempo e pelo peso de suas lembranças. Essa foi sua rotina por anos.
Segundo eu soube um belo dia após muitos anos, ela pode substituir seu passeio diário pelas ruas do bairro por uma maravilhosa caminhada à beira mar. –“Deus que maravilha! Como antigamente. Após tanto tempo, Dona Eugenia pisava novamente no chão de sua terra afundava com gosto os pés na mesma areia e na mesma praia onde havia sido criada no litoral de Pernambuco. Estava de volta. Com lágrimas nos olhos ela sentia uma felicidade imensa.
Uma emoção difícil de explicar, mas na sua idade, ela já havia aprendido que tem coisas que não se explica se sente, e ela já passara há muito do período em que se precisa convencer os outros de alguma coisa. O que ela sentia era algo dela e assim estava satisfeita. Sua emoção ensimesmada lhe bastava.
 Que saudade enorme que ela sentira tantos anos longe de sua pequena vila. Olhava para as casas que continuavam simples, mas que depois de mais de 60 anos, o tempo tão longo havia carimbado em tudo um tom de modernidade. Agora havia carros, fios de telefone e antenas parabólicas, daquelas bem grandes. Mas o básico e fundamental estavam lá intactos: o mar, o céu, os coqueirais, o farol e aquele sol lindo, limpo sem nuvens que ajudava a pintar de verde o mar dos pescadores. Procurou com os olhos no horizonte as pequenas embarcações que como dantes lhe enfeitavam os quadros de sua memória. 
Sentou-se na areia da praia após ter andado algum tempo a chutar a água, sentiu-se como se tivesse novamente vinte anos. Sentou-se na areia extasiada e o fato de estar molhada até as calcinhas após ser atingida por uma onda mais forte não a incomodou. A brisa do mar suave e quente aguçara seus sentidos. Algo estava diferente dentro dela, sentia-se melancólica, e seus olhos se encheram de lágrimas mais uma vez. Parecia-lhe tudo tão vívido que até o cheiro da maresia parecia trazer com ele todos os outros cheiros que estavam presos em sua memória.
Deixou-se ficar por algum tempo ali sentada na areia acompanhando as embarcações que desenhavam a linha do horizonte. Pareciam pequenos pontos sem cor subindo e descendo com balanço frenético do mar. Seu coração saltava-lhe do peito rufando mais forte e descompassado. Tomada por tantas lembranças entregou-se ao passado com prazer. Se eram momentos felizes ou tristes, não importava. Eram seus era a sua história, e ela não se envergonhava ou se arrependia de nada. Sentia saudade apenas, muita saudade, e se pudesse viveria tudo novamente.
Seus olhos já sem brilho e cansados pelo tempo ardiam com a claridade. Mesmo assim, olhava ao longe tentando adivinhar as histórias daqueles pescadores que como seu pai, todos os dias entregavam a vida ao mar. O oceano costumava cobrar caro e roubar par si as vidas e os sonhos de quem não lhe tinha medo. Levava-os para o fundo e por capricho envolvia seus corpos para que adormecessem nas profundezas mais frias e solitárias. Às vezes o mar devolvia, às vezes não. Assim como nunca lhe devolveu seu pai.
Eugenia tinha apenas quatorze anos quando aconteceu, mas ainda hoje aos noventa ela se lembrava de ter ficado ali naquele mesmo ponto da praia. Dias e dias plantada perto da entrada do mangue, a olhar incansavelmente para o oceano, esperando que a embarcação de seu pai retornasse.
 Depois passou muito tempo a esperar que o mar cuspisse os corpos de seu pai e de mais quatro bons homens. O mar não quis, ficou com eles. A morte de seu pai foi sua primeira grande tristeza.
 Mar - Fonte de inspiração e de vida.

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