quinta-feira, 25 de novembro de 2010



Olá pessoal!

Em no máximo uma semana estarei publicando mais um conto. Creio que está ficando bem legal e espero que gostem.
Até lá...

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Um tango para Eulália

Um tango para Eulália
Sandra Santos
Eulália e o homem que escolhera para companheiro haviam chegado àquela cidade há uns dois dias, vieram para algo que ela considerava como uma espécie de lua de mel. A cidade era Buenos Ayres e o hotel em que estavam hospedados era lindo, tinha um ar antigo, digno de um musical de várias décadas atrás.  Chique e pretensamente “Cult”, tão refinado quanto ultrapassado. Lindo, mesmo assim.
Para Eulália que crescera em uma família pobre, tudo era novo, deslumbrante, até o cheiro da cidade era especial, as pessoas que passavam pela rua combinavam tanto com a cidade que pareciam colocadas ali apenas para enriquecer o cenário. Como figurantes escolhidos cautelosamente em um set de filmagem.
Mas ainda assim, apesar da beleza do lugar e de ter se preparado por dias para essa viagem havia a terrível sensação de estar no lugar errado. Sentia-se uma criminosa e não queria que seu companheiro percebesse. Afinal quando voltassem iriam viver juntos. Estavam juntos a pouco tempo e somente agora podiam circular assumindo-se como um casal. Até pouco tempo eram amantes acostumados com a clandestinidade. Talvez por isso essa sensação de não merecer estar bem, de não sentir-se tranqüila como seria o esperado. As confusões e os sustos, a sensação de criminalidade, ficariam para trás. Isso é o que ela dizia para si mesma tentando se convencer, sem nenhum sucesso.
E ainda havia a tristeza profunda causada pela dor da recente e tumultuada separação. Vivera o fim de seu casamento de 10 longos anos.  Um fim nada tranqüilo envolto em brigas e acusações de traição.
Uma única vez traíra e essa traição fora causada por uma paixão incontrolável e agora ela estava ali há quilômetros de distância, com aquele que era o responsável pela reviravolta na sua vida. Eulália apaixonara-se loucamente por Jairo, um argentino bonito e alguns anos mais jovem, que ela conhecera em uma reunião de negócios. Parecia que era recíproco, parecia que ele havia se apaixonado também. Ela precisava acreditar nisso.
Aquele homem de todas as formas possíveis e imaginárias fazia que ela se sentisse amada, desejada. Agora ali naquele lugar distante Eulália sentia medo, sentia-se insegura, não sabia por que, mas algo lhe tirava a tranqüilidade. O homem por quem se apaixonara de repente em algumas ocasiões que ela não saberia ainda localizar parecia-lhe estranho.
Saíra de um relacionamento regado a solidão, precisava da atenção que Jairo lhe dava. Mas... Havia um “mas” pairando como uma névoa sobre sua cabeça. Tudo se parecia demais com uma mentira. Um lado dentro de sua mente já havia decretado: era tudo uma mentira. Mas uma mentira que agora, ela teria que viver. Seu coração lhe alertava ficando dando-lhe pequenos sinais o tempo todo. Mesmo assim ela queria e preferia enganar-se, forçando-se a ficar imune aos alertas de sua intuição. Faria um esforço para sacudir aqueles pensamentos que de nada serviriam para sua felicidade agora.
Seria possível não sentir alguma alegria em conhecer uma cidade tão bonita? Não obstante todos os comentários preconceituosos sobre a antipatia dos argentinos, ela sentia-se extremamente bem recebida, quase como uma conterrânea. Na verdade, seu biotipo realmente fazia com que ela parecesse muito com uma filha da terra. E preferiu pensar que as diferenças eram mesmo somente relacionadas ao futebol.
Como estava combinado, ele a levaria para conhecer a noite portenha, o tango o vinho e seriam momentos inesquecíveis. Ele falava muito sobre a noite argentina e seus encantos. Eulália havia mesmo imaginado muitas vezes a boemia em Buenos Ayres. No fundo tinha um lado seu que apreciava a beleza das noites. Sempre sentiu uma curiosidade romântica acerca dos seres que vagam solitários na noite. Em sua ingenuidade acreditava que todos os boêmios eram artistas, compositores, músicos. Nem de longe se permitiria imaginar criaturas tristes e solitárias vagando sem rumo.
Preparou-se, perfumou-se e vestiu sua roupa especial, estava linda, sentia-se estonteante para a tão esperada noite com o tango. Presente de Jairo a roupa era tão cara quanto seu salário de um mês. Sentiu-se estranha, nunca gastaria tanto dinheiro em uma peça de roupa. Apesar de agradecida achava aquilo um desperdício. Talvez tivesse que se acostumar com aquele tipo de capricho pensou aprovando a imagem que via no espelho. Afinal ele tinha uma condição financeira muito melhor que a dela, mesmo assim toda a simplicidade de sua vida lhe causava certo desconforto com a situação. 
Um momento especial. Porque não conseguia sentir-se feliz? Porque ele simplesmente não a havia levado para um lugar sossegado, simples e sem tanta gente, sem tanta pompa? Porque não tinham ido para alguma praia no Brasil mesmo? Um hotelzinho no meio do nada. Era ainda muito cedo para esse tipo de situação. Ela não estava preparada.
Talvez fosse mais prudente deixar passar o primeiro choque da separação, dos insultos e dos olhares de desaprovação de todos. Será que um dia realmente seriam felizes. As idéias lhe ferviam na mente enquanto dava um último retoque no batom.
Ele não parecia em nada incomodado. Pelo contrário. Tinha apenas unido o útil ao agradável e a escolha de Buenos Ayres se dera também além do fato de ter nascido ali porque tinha muitos negócios importantes a resolver por lá. Sua empresa possuía uma filial no Brasil. Talvez as viagens a Buenos Ayres se tornassem mais freqüentes do que Eulália poderia supor e esse pensamento não lhe pareceu muito agradável.
Enquanto desciam pelo elevador observava atentamente e refletia quanto a postura de Jairo e o ouvia ao telefone dando as últimas instruções para o que se tornara um encontro de negócios: Porque ele não percebera que ela estava assustada? Que simplesmente queria um pouco de tranqüilidade e segurança? Um pouco de paz. Para uma mulher, parece que o processo de separação é mais difícil. Eulália tinha um espírito dócil, não gostava de imaginar que poderia ser a causa do sofrimento de outras pessoas. E era acusada sem dó de provocar dor em muita gente. Jairo por sua vez não conseguia enxergar a nuvem de medo atrás dos olhos de Eulália. Naquele momento ela ainda não sabia, mas ele não conseguia ver mesmo muito além de si próprio. Infelizmente ela perceberia isso muito, muito rápido.
Ele escolhera um pequeno bar no charmoso bairro de Saltelmo em Buenos Aires, e para aquela noite tão prometida que deveria ser só dos dois, haviam inúmeros convidados, estranhos que falavam uma língua estranha e tão rápido que ela só conseguia sorrir assentindo com a cabeça.
Chegaram e afinal o bar não era assim tão longe do hotel, ao entrar ela sentiu-se maravilhada. O bar, sabiamente chamado de “Bar da Noite” não era voltado aos turistas. Sua decoração era antiga, os móveis de madeira escura e torneada, perfeitamente cuidados, deveriam ser de dois séculos atrás e lembravam alguns que havia visto em um museu quando criança. O piso de ladrilhos brancos e pretos atribuía ao local o que Eulália considerou chamar de verdadeira essência de um lugar. O cheiro, a poesia e a música, as pessoas, tudo divinamente organizado para uma noite inesquecível.
Quando entrou naquele lugar decidiu fazer daquela uma noite fantástica, precisava desesperadamente sentir-se feliz. 
Ela estava vestida como uma princesa e sentiu-se no clima da noite portenha, esqueceu-se um pouco das tristezas de seu coração. Esqueceu-se dos convidados de Jairo. Abstraiu-se das conversas chatas e formais, das delicadezas mentirosas e da ausência do companheiro que se entregou a agradar seus convidados, para salvar a sua noite entregou-se as delícias do vinho e do tango.
O casal que se apresentava era surreal, assim como a “leseira” que o vinho começava a lhe causar. Sua mente estava mais leve e pela primeira vez naquela viagem e em semanas sentia-se feliz. Entrou no clima da noite e na vibração daquela música que era tocada ao vivo por um grupo que parecia ser parte de um museu de cera. Três homens já bem velhos tocando de maneira inigualável instrumentos que além do violão ela não conhecia. A harmonia deles com o lugar era perfeita, não dava para imaginar aquele bar sem eles. Talvez tivessem nascido ali pensou Eulália meio zonza.
Olhando para os convidados em sua mesa pensou: Ai meu Deus como esses caras são chatos! Riu-se imaginando que talvez o vinho estivesse fazendo com que ela visse uma espécie de legenda, e a língua que eles falavam já nem era tão estrangeira assim. Jairo desapareceu na fumaça dos cigarros e nas risadas das pessoas presentes. Ela já não estava mais com eles. Estava sozinha novamente como nos longos anos de seu casamento. Engraçado ela sentiu-se a vontade consigo mesma e com a liberdade para divertir-se com tudo o que via. Tudo tão novo e diferente.
O lugar era perfeito e ela estava feliz naquele momento. Anunciaram o show da noite. O Tango. Ah! O tango! Que música de sedução, que beleza a harmonia que um casal deve possuir para desenvolver todos os passos intricados e elaborados do tango. Eulália pensou se o sexo fosse uma música seria definitivamente o tango. Foram várias músicas e mais uma taça de bom vinho, e ela estava maravilhada com o que via. Invejou conscientemente a dançarina. Gostaria de trocar de lugar com ela. Gostaria de viver outra vida. 
Como de praxe o casal terminou sua apresentação convidando pessoas do público para dançar.  Pareceu a Eulália que isso era costumeiro, parte mesmo do show e embora achasse que seria demais querer participar da brincadeira intimamente desejou ser escolhida.
A moça escolheu um homem grisalho e tímido da mesa ao lado, que por coincidência era formada por brasileiros, e o dançarino foi direto na direção de Eulália. Não escolheu uma moça qualquer... Escolheu Eulália.
Seu coração disparou e sem acreditar muito no que acontecia pensou que talvez não fosse verdade talvez fosse uma alucinação causada pelo vinho. Mesmo assim, Eulália estendeu a mão para aquele moço bonito. Quase já no meio da pista lembrou-se de Jairo buscou um olhar de aprovação de seu parceiro e não o recebeu. Ao olhar a sua volta, porém viu a aprovação do bar inteiro. Dirigiu-se para o meio da pista, era isso que todos esperavam. Que ela aceitasse o convite. Era isso que todas as mulheres naquele bar queriam. Era isso o que ela queria. E foi.
Por minutos que pareceram fugazes demais ela se lançou com confiança e liberdade etílica nos braços daquele homem que encarnava a alma da cidade e todas as histórias de paixão e desejo que ela se lembrava.
Rodopiou sem medo nos braços do tango. Não do moço, mas do tango, da poesia que faltava em sua vida. Esqueceu-se da tristeza e do medo e sentiu a musica invadindo sua alma e sua mente. Por momentos esqueceu-se do passado e principalmente do futuro que a apavorava.
Para ser simplesmente livre, simplesmente uma mulher...


sábado, 13 de novembro de 2010

Coisas que vejo: Apartheid no país da igualdade?

Coisas que vejo: Apartheid no país da igualdade?: " Minha gerbera em mil cores  O sono me abate e o dia segue moroso, enjoado. Não há sol e as pessoas estão nubladas. Bocejo e converso ..."

Apartheid no país da igualdade?


Minha gerbera em mil cores 

O sono me abate e o dia segue moroso, enjoado. Não há sol e as pessoas estão nubladas.  Bocejo e converso com meus olhos tentando convencê-los a permanecerem abertos. A mente já adormeceu e o raciocínio repousa no lugar onde moram as idéias sem nexo.
Num esforço para manter o sol e o calor ao menos dentro de mim, me concentro e escrevo. Já começo a aquecer-me.
Observo a minha volta procurando alguma inspiração e computo ao lugar em que me encontro a causa e a fonte desta neblina que me envolve. Parece ter envolvido a todos. Como consigo desfazê-la?  Na esperança de ficar imune olho mais atentamente a minha volta buscando por almas sorridentes, pois acredito,há sim, muitas almas sorridentes. 
É uma pena, neste momento não encontro nenhuma. Ninguém com a tez límpida e aquela aparência que nos conduz a um sorriso espontâneo rápido e que, mesmo apesar de fugaz, nos faz bem.
 Infelizmente, ao olhar em minha volta não encontrei sorrisos muito menos a promessa de algum, encontrei verdadeiros zumbis.
Vagando de um lado para outro, completamente perdidos.  Estão sempre por aqui, os vejo andando em bandos e falando alto numa língua que é quase um dialeto próprio. Suas roupas são tão estranhas quanto seus cabelos e é nítido que existe a configuração de um “bando”. Assim como numa colméia ou numa matilha é a formação do bando que os protege.
 De quem falo?  Montes, pencas de adolescentes “cabulando as aulas”, andando de lá para cá. É a síndrome da sexta-feira. Seus pais em sua maioria não sabem que estão aqui. Fazendo nada além de transgredir uma pequena regra e fazer o que na época da minha mãe chamava de footing, no meu tempo, e isso já é muito tempo chamava-se paquera. Hoje não sei.
O que sei é que se olham e somem, vão apara algum lugar mais isolado. Não necessariamente em pares, isso parece que é coisa antiga! Voltam escolhem outros parceiros e somem novamente. Alguns de tão pequenos parecem ser ainda pré-adolescentes.
São apenas crianças e desconhecem o significado da palavra futuro. Eles residem na periferia da periferia de São Paulo.
Falam pouco e com tantas gírias que quase preciso de tradutor e seus assuntos rodopiam entre futebol, meninos e meninas, sexo e uma coisa barulhenta e vulgar que eles chamam de música. Fumam cigarro e narguilê, carregam bebidas alcoólicas em suas mochilas no meio dos cadernos ainda pela manhã. Não falam de namoro e parece que dificilmente se envolvem emocionalmente, mas enroscam-se pelos cantos aos beijos e amassos. Acho que amasso também é uma palavra antiga, ultrapassada. Sexo, no entanto, já não é novidade para a maioria.
Olho para eles e me sinto extremamente triste, pois sua vida e suas roupas e principalmente suas atitudes escancaram as diferenças sociais, diferenças das quais são vítimas. São estranhos, perdidos e nem em sombra lembram a adolescente sonhadora e ingênua que fui. Há tempos perderam a sua inocência.
Quando consigo ouvi-los conversando entre si ou se acaso converso com um, percebo que seus interesses giram em torno do presente, mais especificamente da hora que está sendo vivenciada, não sonham com o futuro.
Gostaria de ver alegria no rosto destas crianças, queria que sentissem em segurança. Queria que sentissem amor, que também pudessem sonhar com realizações e proezas, assim como sonham outros adolescentes de sua idade. Outros que moram na mesma cidade, mas que são apartadas pela realidade. Realidades socioeconômicas tão diferentes como diferem o Saara da Amazônia.
No Brasil o apartheid é social e aumenta a cada dia.
Estudo, carreira, viagens, aparelhos eletrônicos, roupas, livros, saúde... Isso eles só vêm nas novelas e o pior que se contentam só em ver e acreditam que não merecem.  Mas como merecem!  Todos são as nossas crianças. Mas estas que vejo e convivo são crianças abandonadas, perdidas, soltas ao vento. Tratadas todas como filhos bastardos sem direitos. Completamente sem rumo e sem apoio. Suas famílias inteiras estão abandonadas, bairros inteiros, abandonados. Criando um código de conduta que só prejudica a elas mesmas, crescem acreditando que são a ralé e agem como tal.
Não ousam sonhar e estão aqui e agora fugindo de uma escola que elas não acreditam e que não acredita nelas. Possuem professores que provavelmente cresceram da mesma forma. Acredito mesmo que alguns nem percebem qual é o papel que estão desempenham neste grande teatro.  Outros, já cansados da labuta sentem-se na obrigação de mudar o mundo e sofrem demais para continuar trabalhando e convivendo com essa triste realidade todos os dias, desistem. Outros, e desestimulados não agüentando mais os baixos salários e a sensação de impotência adoecem. Há ainda aqueles que numa tentativa de manter sua saúde mental “largam mão”. Infelizmente, de uma forma ou de outra, conscientemente ou não, todos sem exceção acabam colaborando de alguma forma na perpetuação desse limbo.
Falo agora como professora que já fui e como filha de um professor maravilhoso que dedicou sua vida e sua saúde ao sacerdócio de educar: esses meninos e meninas não querem presentes, não querem agrados. Querem justiça, querem o que é seu. Querem simplesmente um lugar no mundo.
E nós adultos? E eu, que tristemente não consigo fingir que não vejo. Não consigo deixar de sentir e observo o mundo a minha volta. Eu que enxerguei neles a minha distante adolescência? O que eu quero? O que eu gostaria de ver para os filhos de outros assim como quero para os filhos que são meus?  O que eu acho que eles querem? 
Acho querem condições de lutar por espaço de igual para igual. Querem uma luta limpa. Querem que seus pais tenham trabalho e salário, uma escola que reconheça que eles sabem e querem pensar.  Eu quero que eles reaprendam a sorrir.
Acredito que eles querem gritar bem alto: - Eu quero!  Alto, tão alto que não deixe nenhuma dúvida.
Gostaria de imaginar um mundo assim. Onde todas as crianças pudessem sonhar com o que vão ser quando crescer, Um mundo que seja possível desde que se queira.
Infelizmente, cresci ouvindo que o Brasil era o país do futuro. Ainda não sei do futuro de quem.  Hoje vejo um país onde tudo o que se espera é entrar em alguma fila para receber algum benefício.
Vivemos em um país onde sonhar não faz parte, onde os desejos se resumem aos da carne e talvez seja por isso que nossos adolescentes se iniciem cada vez mais cedo no sexo e explorem cada vez mais livremente todas as alternativas. Afinal, do seu próprio corpo, e de uma maneira perversa quase punitiva, ainda lhes pertence. Hoje aos doze, treze anos conhecem o cigarro, bebidas alcoólicas o sexo livre e sem restrições e com o tempo quando o prazer fica mais difícil, recorrem às drogas, a prostituição, a depressão e a solidão.
Morrem cedo, cada vez mais cedo...

FIM

Império
É imperativo que cresça. É imperativo que te empregues.
É imperativo que cases e te reproduzas. Deixe descendentes. Um legado.
É imperativo que tenhas idéias, que saibas o que quer. Que lute por elas, que te definas e que não desistas.
É imperativo que morra?
Imperas em ti?
Imperas ou esperas?
Não se engane amanhã acordarás no mesmo corpo e com os mesmos problemas...
Então lute!
Levante a cabeça que carrega os teus pensamentos, pois estes, ninguém domina são teus.

Sandra Santos
12/11/2010

sábado, 6 de novembro de 2010

O Homem que latia.

             No metrô indo para o trabalho, isso há uns bons sete anos atrás, eu estava milagrosamente  sentada, o que era  raro naquele horário da manhã e sabia que em minutos o trem ficaria completamente lotado.O silêncio que existe onde muitas pessoas se encontram e são forçadas a dividir o mesmo espaço já estava instalado.
             Numa situação em que é comum estar todos os dias acotovelando-se nos trens urbanos é comum as pessoas  esforçam-se para não serem notadas. Todos estão com sono, esperando por um longo dia de trabalho. A viagem geralmente longa, causa aquela impressão que não deveríamos estar alí. Todos se vêem mas ninguém se olha. Vez por outra, entra uma daquelas pessoas que acham que ali é o local ideal para fazer amizade, começam a falar sem que você dê nenhum incentivo e não param mais. Talvez a solidão potencialize isso, sei lá.   Na maioria das vezes a única coisa que se quer, é ficar calado. 
              Tudo parecia normal até que apenas uma estação após a minha, entrou um homem que não parecia diferente de ninguém, achei que iria se sentar mas preferiu ficar em pé perto da porta. Era um homem comum como maioria que sai para trabalhar pela manhã e continua anônimo. Provavelmente eu não me lembraria dele. Até que de repente, quem sabe Deus porque motivo, resolveu latir. Sim, latir como um cachorro, desses bem bravos.
             Num primeiro momento tirou o folego de todos e as pessoas que estavam naquele vagão ficaram aturdidas. O que estava acontecendo afinal? A presença da loucura ou de algo que não se explica nos aturde.               
              Naquele dia, todas as convenções haviam sido quebradas por aquele homem que latia. Passado o primeiro impacto, ele que já havia conseguido a atenção de todos agora iniciava sua história:
           Havia chegado nesta "cidade de loucos" e não sabia o que ainda fazia aqui. Nada dera certo para ele. Perdera a mulher que o traíra com um  amigo, perdera o emprego pois seu chefe era um idiota, perdera o carro e agora não sabia para onde ir.
              Perdera também a alegria e eu acredito que sua sanidade já o havia abandonado também.
              Mais uma estação e ele passou a chamar o "cahorro" de Toinho, latia e dizia para o Toinho calar-se. A porta abria e Toinho entrava em ação. Ninguém se atrevia a entrar. Nas distâncias entre uma estação e outra ele retomava a sua história.
              Há algumas estações antes da Sé,  naquele vagão as pessoas já entreolhavam-se com certa cumplicidade e segundos antes do trem de abrir as portas alguém quebrou o gelo e gritou:
- Solta o Toinho!!!
             Quase todos caíram aos risos pois só então nos davamos conta de  que o vagão mantivera-se praticamente vazio por todo o percurso, quem iria passar por uma porta que era guardada por aquele homem que sabia latir tão ferozmente?
             Todos riram... eu ri. Mas um riso sem jeito, um riso nervoso um riso que não merecia ser rido se é que existe essa palavra... Estavamos todos diante da miséria de um ser humano. Perdido. sofrido, sem referências ou direção e ainda assim alguém conseguia usar a situação a seu favor.
             Até hoje me lembro daquele homem e me pergunto será que no fundo ele é quem ria de nós? Será que se divertiu ao ver nossas reações tão diversificadas? Nossas expressões de pânico e de impotência diante daquilo que não compreendemos?
           Ainda hoje quando me lembro penso que gostaria de saber o que foi feito daquele homem e de seu "Toinho".