sábado, 13 de novembro de 2010

Apartheid no país da igualdade?


Minha gerbera em mil cores 

O sono me abate e o dia segue moroso, enjoado. Não há sol e as pessoas estão nubladas.  Bocejo e converso com meus olhos tentando convencê-los a permanecerem abertos. A mente já adormeceu e o raciocínio repousa no lugar onde moram as idéias sem nexo.
Num esforço para manter o sol e o calor ao menos dentro de mim, me concentro e escrevo. Já começo a aquecer-me.
Observo a minha volta procurando alguma inspiração e computo ao lugar em que me encontro a causa e a fonte desta neblina que me envolve. Parece ter envolvido a todos. Como consigo desfazê-la?  Na esperança de ficar imune olho mais atentamente a minha volta buscando por almas sorridentes, pois acredito,há sim, muitas almas sorridentes. 
É uma pena, neste momento não encontro nenhuma. Ninguém com a tez límpida e aquela aparência que nos conduz a um sorriso espontâneo rápido e que, mesmo apesar de fugaz, nos faz bem.
 Infelizmente, ao olhar em minha volta não encontrei sorrisos muito menos a promessa de algum, encontrei verdadeiros zumbis.
Vagando de um lado para outro, completamente perdidos.  Estão sempre por aqui, os vejo andando em bandos e falando alto numa língua que é quase um dialeto próprio. Suas roupas são tão estranhas quanto seus cabelos e é nítido que existe a configuração de um “bando”. Assim como numa colméia ou numa matilha é a formação do bando que os protege.
 De quem falo?  Montes, pencas de adolescentes “cabulando as aulas”, andando de lá para cá. É a síndrome da sexta-feira. Seus pais em sua maioria não sabem que estão aqui. Fazendo nada além de transgredir uma pequena regra e fazer o que na época da minha mãe chamava de footing, no meu tempo, e isso já é muito tempo chamava-se paquera. Hoje não sei.
O que sei é que se olham e somem, vão apara algum lugar mais isolado. Não necessariamente em pares, isso parece que é coisa antiga! Voltam escolhem outros parceiros e somem novamente. Alguns de tão pequenos parecem ser ainda pré-adolescentes.
São apenas crianças e desconhecem o significado da palavra futuro. Eles residem na periferia da periferia de São Paulo.
Falam pouco e com tantas gírias que quase preciso de tradutor e seus assuntos rodopiam entre futebol, meninos e meninas, sexo e uma coisa barulhenta e vulgar que eles chamam de música. Fumam cigarro e narguilê, carregam bebidas alcoólicas em suas mochilas no meio dos cadernos ainda pela manhã. Não falam de namoro e parece que dificilmente se envolvem emocionalmente, mas enroscam-se pelos cantos aos beijos e amassos. Acho que amasso também é uma palavra antiga, ultrapassada. Sexo, no entanto, já não é novidade para a maioria.
Olho para eles e me sinto extremamente triste, pois sua vida e suas roupas e principalmente suas atitudes escancaram as diferenças sociais, diferenças das quais são vítimas. São estranhos, perdidos e nem em sombra lembram a adolescente sonhadora e ingênua que fui. Há tempos perderam a sua inocência.
Quando consigo ouvi-los conversando entre si ou se acaso converso com um, percebo que seus interesses giram em torno do presente, mais especificamente da hora que está sendo vivenciada, não sonham com o futuro.
Gostaria de ver alegria no rosto destas crianças, queria que sentissem em segurança. Queria que sentissem amor, que também pudessem sonhar com realizações e proezas, assim como sonham outros adolescentes de sua idade. Outros que moram na mesma cidade, mas que são apartadas pela realidade. Realidades socioeconômicas tão diferentes como diferem o Saara da Amazônia.
No Brasil o apartheid é social e aumenta a cada dia.
Estudo, carreira, viagens, aparelhos eletrônicos, roupas, livros, saúde... Isso eles só vêm nas novelas e o pior que se contentam só em ver e acreditam que não merecem.  Mas como merecem!  Todos são as nossas crianças. Mas estas que vejo e convivo são crianças abandonadas, perdidas, soltas ao vento. Tratadas todas como filhos bastardos sem direitos. Completamente sem rumo e sem apoio. Suas famílias inteiras estão abandonadas, bairros inteiros, abandonados. Criando um código de conduta que só prejudica a elas mesmas, crescem acreditando que são a ralé e agem como tal.
Não ousam sonhar e estão aqui e agora fugindo de uma escola que elas não acreditam e que não acredita nelas. Possuem professores que provavelmente cresceram da mesma forma. Acredito mesmo que alguns nem percebem qual é o papel que estão desempenham neste grande teatro.  Outros, já cansados da labuta sentem-se na obrigação de mudar o mundo e sofrem demais para continuar trabalhando e convivendo com essa triste realidade todos os dias, desistem. Outros, e desestimulados não agüentando mais os baixos salários e a sensação de impotência adoecem. Há ainda aqueles que numa tentativa de manter sua saúde mental “largam mão”. Infelizmente, de uma forma ou de outra, conscientemente ou não, todos sem exceção acabam colaborando de alguma forma na perpetuação desse limbo.
Falo agora como professora que já fui e como filha de um professor maravilhoso que dedicou sua vida e sua saúde ao sacerdócio de educar: esses meninos e meninas não querem presentes, não querem agrados. Querem justiça, querem o que é seu. Querem simplesmente um lugar no mundo.
E nós adultos? E eu, que tristemente não consigo fingir que não vejo. Não consigo deixar de sentir e observo o mundo a minha volta. Eu que enxerguei neles a minha distante adolescência? O que eu quero? O que eu gostaria de ver para os filhos de outros assim como quero para os filhos que são meus?  O que eu acho que eles querem? 
Acho querem condições de lutar por espaço de igual para igual. Querem uma luta limpa. Querem que seus pais tenham trabalho e salário, uma escola que reconheça que eles sabem e querem pensar.  Eu quero que eles reaprendam a sorrir.
Acredito que eles querem gritar bem alto: - Eu quero!  Alto, tão alto que não deixe nenhuma dúvida.
Gostaria de imaginar um mundo assim. Onde todas as crianças pudessem sonhar com o que vão ser quando crescer, Um mundo que seja possível desde que se queira.
Infelizmente, cresci ouvindo que o Brasil era o país do futuro. Ainda não sei do futuro de quem.  Hoje vejo um país onde tudo o que se espera é entrar em alguma fila para receber algum benefício.
Vivemos em um país onde sonhar não faz parte, onde os desejos se resumem aos da carne e talvez seja por isso que nossos adolescentes se iniciem cada vez mais cedo no sexo e explorem cada vez mais livremente todas as alternativas. Afinal, do seu próprio corpo, e de uma maneira perversa quase punitiva, ainda lhes pertence. Hoje aos doze, treze anos conhecem o cigarro, bebidas alcoólicas o sexo livre e sem restrições e com o tempo quando o prazer fica mais difícil, recorrem às drogas, a prostituição, a depressão e a solidão.
Morrem cedo, cada vez mais cedo...

FIM

Império
É imperativo que cresça. É imperativo que te empregues.
É imperativo que cases e te reproduzas. Deixe descendentes. Um legado.
É imperativo que tenhas idéias, que saibas o que quer. Que lute por elas, que te definas e que não desistas.
É imperativo que morra?
Imperas em ti?
Imperas ou esperas?
Não se engane amanhã acordarás no mesmo corpo e com os mesmos problemas...
Então lute!
Levante a cabeça que carrega os teus pensamentos, pois estes, ninguém domina são teus.

Sandra Santos
12/11/2010

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