terça-feira, 23 de novembro de 2010

Um tango para Eulália

Um tango para Eulália
Sandra Santos
Eulália e o homem que escolhera para companheiro haviam chegado àquela cidade há uns dois dias, vieram para algo que ela considerava como uma espécie de lua de mel. A cidade era Buenos Ayres e o hotel em que estavam hospedados era lindo, tinha um ar antigo, digno de um musical de várias décadas atrás.  Chique e pretensamente “Cult”, tão refinado quanto ultrapassado. Lindo, mesmo assim.
Para Eulália que crescera em uma família pobre, tudo era novo, deslumbrante, até o cheiro da cidade era especial, as pessoas que passavam pela rua combinavam tanto com a cidade que pareciam colocadas ali apenas para enriquecer o cenário. Como figurantes escolhidos cautelosamente em um set de filmagem.
Mas ainda assim, apesar da beleza do lugar e de ter se preparado por dias para essa viagem havia a terrível sensação de estar no lugar errado. Sentia-se uma criminosa e não queria que seu companheiro percebesse. Afinal quando voltassem iriam viver juntos. Estavam juntos a pouco tempo e somente agora podiam circular assumindo-se como um casal. Até pouco tempo eram amantes acostumados com a clandestinidade. Talvez por isso essa sensação de não merecer estar bem, de não sentir-se tranqüila como seria o esperado. As confusões e os sustos, a sensação de criminalidade, ficariam para trás. Isso é o que ela dizia para si mesma tentando se convencer, sem nenhum sucesso.
E ainda havia a tristeza profunda causada pela dor da recente e tumultuada separação. Vivera o fim de seu casamento de 10 longos anos.  Um fim nada tranqüilo envolto em brigas e acusações de traição.
Uma única vez traíra e essa traição fora causada por uma paixão incontrolável e agora ela estava ali há quilômetros de distância, com aquele que era o responsável pela reviravolta na sua vida. Eulália apaixonara-se loucamente por Jairo, um argentino bonito e alguns anos mais jovem, que ela conhecera em uma reunião de negócios. Parecia que era recíproco, parecia que ele havia se apaixonado também. Ela precisava acreditar nisso.
Aquele homem de todas as formas possíveis e imaginárias fazia que ela se sentisse amada, desejada. Agora ali naquele lugar distante Eulália sentia medo, sentia-se insegura, não sabia por que, mas algo lhe tirava a tranqüilidade. O homem por quem se apaixonara de repente em algumas ocasiões que ela não saberia ainda localizar parecia-lhe estranho.
Saíra de um relacionamento regado a solidão, precisava da atenção que Jairo lhe dava. Mas... Havia um “mas” pairando como uma névoa sobre sua cabeça. Tudo se parecia demais com uma mentira. Um lado dentro de sua mente já havia decretado: era tudo uma mentira. Mas uma mentira que agora, ela teria que viver. Seu coração lhe alertava ficando dando-lhe pequenos sinais o tempo todo. Mesmo assim ela queria e preferia enganar-se, forçando-se a ficar imune aos alertas de sua intuição. Faria um esforço para sacudir aqueles pensamentos que de nada serviriam para sua felicidade agora.
Seria possível não sentir alguma alegria em conhecer uma cidade tão bonita? Não obstante todos os comentários preconceituosos sobre a antipatia dos argentinos, ela sentia-se extremamente bem recebida, quase como uma conterrânea. Na verdade, seu biotipo realmente fazia com que ela parecesse muito com uma filha da terra. E preferiu pensar que as diferenças eram mesmo somente relacionadas ao futebol.
Como estava combinado, ele a levaria para conhecer a noite portenha, o tango o vinho e seriam momentos inesquecíveis. Ele falava muito sobre a noite argentina e seus encantos. Eulália havia mesmo imaginado muitas vezes a boemia em Buenos Ayres. No fundo tinha um lado seu que apreciava a beleza das noites. Sempre sentiu uma curiosidade romântica acerca dos seres que vagam solitários na noite. Em sua ingenuidade acreditava que todos os boêmios eram artistas, compositores, músicos. Nem de longe se permitiria imaginar criaturas tristes e solitárias vagando sem rumo.
Preparou-se, perfumou-se e vestiu sua roupa especial, estava linda, sentia-se estonteante para a tão esperada noite com o tango. Presente de Jairo a roupa era tão cara quanto seu salário de um mês. Sentiu-se estranha, nunca gastaria tanto dinheiro em uma peça de roupa. Apesar de agradecida achava aquilo um desperdício. Talvez tivesse que se acostumar com aquele tipo de capricho pensou aprovando a imagem que via no espelho. Afinal ele tinha uma condição financeira muito melhor que a dela, mesmo assim toda a simplicidade de sua vida lhe causava certo desconforto com a situação. 
Um momento especial. Porque não conseguia sentir-se feliz? Porque ele simplesmente não a havia levado para um lugar sossegado, simples e sem tanta gente, sem tanta pompa? Porque não tinham ido para alguma praia no Brasil mesmo? Um hotelzinho no meio do nada. Era ainda muito cedo para esse tipo de situação. Ela não estava preparada.
Talvez fosse mais prudente deixar passar o primeiro choque da separação, dos insultos e dos olhares de desaprovação de todos. Será que um dia realmente seriam felizes. As idéias lhe ferviam na mente enquanto dava um último retoque no batom.
Ele não parecia em nada incomodado. Pelo contrário. Tinha apenas unido o útil ao agradável e a escolha de Buenos Ayres se dera também além do fato de ter nascido ali porque tinha muitos negócios importantes a resolver por lá. Sua empresa possuía uma filial no Brasil. Talvez as viagens a Buenos Ayres se tornassem mais freqüentes do que Eulália poderia supor e esse pensamento não lhe pareceu muito agradável.
Enquanto desciam pelo elevador observava atentamente e refletia quanto a postura de Jairo e o ouvia ao telefone dando as últimas instruções para o que se tornara um encontro de negócios: Porque ele não percebera que ela estava assustada? Que simplesmente queria um pouco de tranqüilidade e segurança? Um pouco de paz. Para uma mulher, parece que o processo de separação é mais difícil. Eulália tinha um espírito dócil, não gostava de imaginar que poderia ser a causa do sofrimento de outras pessoas. E era acusada sem dó de provocar dor em muita gente. Jairo por sua vez não conseguia enxergar a nuvem de medo atrás dos olhos de Eulália. Naquele momento ela ainda não sabia, mas ele não conseguia ver mesmo muito além de si próprio. Infelizmente ela perceberia isso muito, muito rápido.
Ele escolhera um pequeno bar no charmoso bairro de Saltelmo em Buenos Aires, e para aquela noite tão prometida que deveria ser só dos dois, haviam inúmeros convidados, estranhos que falavam uma língua estranha e tão rápido que ela só conseguia sorrir assentindo com a cabeça.
Chegaram e afinal o bar não era assim tão longe do hotel, ao entrar ela sentiu-se maravilhada. O bar, sabiamente chamado de “Bar da Noite” não era voltado aos turistas. Sua decoração era antiga, os móveis de madeira escura e torneada, perfeitamente cuidados, deveriam ser de dois séculos atrás e lembravam alguns que havia visto em um museu quando criança. O piso de ladrilhos brancos e pretos atribuía ao local o que Eulália considerou chamar de verdadeira essência de um lugar. O cheiro, a poesia e a música, as pessoas, tudo divinamente organizado para uma noite inesquecível.
Quando entrou naquele lugar decidiu fazer daquela uma noite fantástica, precisava desesperadamente sentir-se feliz. 
Ela estava vestida como uma princesa e sentiu-se no clima da noite portenha, esqueceu-se um pouco das tristezas de seu coração. Esqueceu-se dos convidados de Jairo. Abstraiu-se das conversas chatas e formais, das delicadezas mentirosas e da ausência do companheiro que se entregou a agradar seus convidados, para salvar a sua noite entregou-se as delícias do vinho e do tango.
O casal que se apresentava era surreal, assim como a “leseira” que o vinho começava a lhe causar. Sua mente estava mais leve e pela primeira vez naquela viagem e em semanas sentia-se feliz. Entrou no clima da noite e na vibração daquela música que era tocada ao vivo por um grupo que parecia ser parte de um museu de cera. Três homens já bem velhos tocando de maneira inigualável instrumentos que além do violão ela não conhecia. A harmonia deles com o lugar era perfeita, não dava para imaginar aquele bar sem eles. Talvez tivessem nascido ali pensou Eulália meio zonza.
Olhando para os convidados em sua mesa pensou: Ai meu Deus como esses caras são chatos! Riu-se imaginando que talvez o vinho estivesse fazendo com que ela visse uma espécie de legenda, e a língua que eles falavam já nem era tão estrangeira assim. Jairo desapareceu na fumaça dos cigarros e nas risadas das pessoas presentes. Ela já não estava mais com eles. Estava sozinha novamente como nos longos anos de seu casamento. Engraçado ela sentiu-se a vontade consigo mesma e com a liberdade para divertir-se com tudo o que via. Tudo tão novo e diferente.
O lugar era perfeito e ela estava feliz naquele momento. Anunciaram o show da noite. O Tango. Ah! O tango! Que música de sedução, que beleza a harmonia que um casal deve possuir para desenvolver todos os passos intricados e elaborados do tango. Eulália pensou se o sexo fosse uma música seria definitivamente o tango. Foram várias músicas e mais uma taça de bom vinho, e ela estava maravilhada com o que via. Invejou conscientemente a dançarina. Gostaria de trocar de lugar com ela. Gostaria de viver outra vida. 
Como de praxe o casal terminou sua apresentação convidando pessoas do público para dançar.  Pareceu a Eulália que isso era costumeiro, parte mesmo do show e embora achasse que seria demais querer participar da brincadeira intimamente desejou ser escolhida.
A moça escolheu um homem grisalho e tímido da mesa ao lado, que por coincidência era formada por brasileiros, e o dançarino foi direto na direção de Eulália. Não escolheu uma moça qualquer... Escolheu Eulália.
Seu coração disparou e sem acreditar muito no que acontecia pensou que talvez não fosse verdade talvez fosse uma alucinação causada pelo vinho. Mesmo assim, Eulália estendeu a mão para aquele moço bonito. Quase já no meio da pista lembrou-se de Jairo buscou um olhar de aprovação de seu parceiro e não o recebeu. Ao olhar a sua volta, porém viu a aprovação do bar inteiro. Dirigiu-se para o meio da pista, era isso que todos esperavam. Que ela aceitasse o convite. Era isso que todas as mulheres naquele bar queriam. Era isso o que ela queria. E foi.
Por minutos que pareceram fugazes demais ela se lançou com confiança e liberdade etílica nos braços daquele homem que encarnava a alma da cidade e todas as histórias de paixão e desejo que ela se lembrava.
Rodopiou sem medo nos braços do tango. Não do moço, mas do tango, da poesia que faltava em sua vida. Esqueceu-se da tristeza e do medo e sentiu a musica invadindo sua alma e sua mente. Por momentos esqueceu-se do passado e principalmente do futuro que a apavorava.
Para ser simplesmente livre, simplesmente uma mulher...


2 comentários:

  1. Quem dera uma noite regada e vinho e tango, ao lado do homem que amo!Pena que nenhum dos dois sabe dançar, parece que engolimos o rodo.

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  2. Muito bom o conto! amei....
    tem parte 2??rs

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