sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Dona Eugenia - Parte 2



Dona Eugenia ficou ali observando suas lembranças como se por um presente divino sua vida lhe passasse inteira pela frente dos olhos. Como se seu coração pudesse sentir novamente em primeira mão as emoções, e também o medo que sentiu quando percebeu que seu pai não voltaria. Ninguém sabia de seus irmãos, haviam debandado e se eram vivos ou mortos, só Deus tinha essa informação.
Após perder Januário o primogênito, afogado em uma tormenta, Mestre Dionísio não fez mais questão de levar os filhos consigo em seu ofício bendito. Preferiu se omitir quando eles, um a um, foram corrompidos pelo apelo da vida em alguma cidade que, fosse onde fosse, de lá nunca havia chegado sequer uma carta. Nem poderia avisá-los do desaparecimento do pai e secretamente Eugenia os odiou com todas as forças de seu coração.
Sem a mãe desde pequena, seu pai era sua vida e sua referência. Ele era o único que estaria por ela, para defendê-la e protegê-la em qualquer circunstância. Muitas vezes desejou ter nascido um menino para ir com o pai para o mar. Eugenia sabia que por trás daquele jeito quieto, o pai a amava. O mundo que ela conhecia havia agora acabado e parecia-lhe um buraco sem fundo, escuro e assustador.
 Quase desmaiou na igrejinha durante a missa de domingo quando deram como mortos os pescadores levados por aquela tormenta que ficou celebre. – Agora é oficial. Disse o capelão, e continuou a ler o comunicado escrito pelos oficiais do quartel da marinha que ficava ali em Tamandaré. –Após cinco dias de procura exaustiva a marinha vem a público comunicar as famílias, em seu pesar, que não há mais nenhuma esperança. Nenhum sinal que ainda nos mova a manter o efetivo no oceano para procurar algum sobrevivente. O capelão suspirou enxugando a testa com um lenço e continuou: Que Deus os tenha em sua Glória e Misericórdia, e que a fé possa confortar as famílias enlutadas.
Dona germana contara a todos que a sorte dos pescadores fora comentada na capital, e que a tormenta havia sido notícia no jornal ‘O Diário de Pernambuco’. Uma pequena nota é verdade, mas havia sido notícia. A pequena Tamandaré havia ‘saído no jornal’ e Dona Germana enfatizava a importância do acontecido. De alguma forma deturpada ela estava entre feliz e excitada. Com todo aquele alvoroço agia como se morar na cidade dos fatos, pudesse por tabela torná-la alguém importante ou famosa. Dona Germana garantiu que um conhecido lá da capital lhe conseguiria uma cópia do periódico. 
Até mesmo Eugenia, por mais simples e inocente que ela fosse, sabia que em algum tempo ninguém além das famílias enlutadas iria se lembrar.  Ela entendeu muito rápido que alguns pobres pescadores não tinham importância para mais ninguém além de suas próprias famílias. Naquela manhã que parecia ser a mais quente que ela já tinha visto, começou a sentir-se mal enquanto o capelão dava continuidade aquela missa sem fim.
Queria tirar os olhos de todos de cima dela, pois percebeu que eram olhares de dó. Sentiu medo, muito medo. Eugenia fechou bem forte os olhos por várias vezes para ver se tudo sumia.  Pensou em entrar no mar e encontrar o pai, fosse como fosse. Será que Deus poderia perdoá-la se fizesse isso sem a intenção de voltar? Será que o pai estaria lá no fim do oceano? Será que de hoje em diante ele ficaria em seu pequeno barco sorrindo para sempre? Será que morto sorri? E, já que agora era morto, o pai ainda se lembraria dela?        - Se eu for encontrá-lo... Também serei morta! Geninha desejava estar morta, mais que tudo naquele momento. A vida e a morte brincavam na cabeça de Eugenia.
Na qualidade de dono da embarcação e patrão dos infelizes mortos, o Senhor José Munhoz se dirigiu ao púlpito para discursar. Colocou-se ao lado do capelão organizando algumas folhas amassadas e que chacoalhavam visivelmente denunciando o tremor de suas mãos. Senhor Munhoz era um homem muito gordo que fez um discurso inflamado. Bufou, gesticulou, estremeceu e mentiu usando todas as palavras difíceis que ele sabia que ninguém entenderia. Mas se tem algo que ninguém duvidou é que em nome de suas ambições políticas, naquela missa o ‘Espanhol Maldito’ explorou mais uma vez aqueles pescadores, pois ao utilizar do púlpito treinou por quase uma hora a arte dos falatórios sem fim.
-Espanhol mentiroso, nojento! Qualquer um sabia que se ele chorasse por algo seria somente pelo seu barco perdido.  Cansada, Eugenia preferiu devanear durante o discurso e sofreu pensando que algumas pessoas iam pro inferno. Ela achava que seu pai era um homem bom e que merecia ir pro céu, mas quem sabe o que se passa na cabeça de Deus? E se Ele cismasse? Quem é que podia com a cisma Divina? Será que o inferno era mesmo do jeito que o padre falava? A imagem das chamas no inferno foi tão horrível que Eugenia estremeceu chamando a atenção de Dona Germana que estava sentada ao seu lado.
Dona Germana era uma espanhola bonita que ninguém entendia como podia ela agüentar aquele homem seboso. Eugenia se acalmou um pouquinho quando sentiu as mãos de Dona Germana sobre a suas. Ela então olhou para o altar e pediu perdão ao Menino Jesus e a Virgem por ter pensado em meter-se no mar em busca do pai. Tomara existisse perdão para os órfãos.  Naquele momento Eugenia pediu a Nossa Senhora um favor. Pediu que seu pai fosse para o céu e que não errasse o caminho, que chegasse bem rápido e encontrasse sua mãe, pois assim ele não ficaria sozinho. Naquele momento Eugenia jurou nunca mais desejar a morte.
Depois da missa, voltou para casa levada pelas mãos bondosas de Dona Germana e quando ela foi embora Eugenia viu-se sozinha em sua casa, aquela mesma casa que agora ela desejava rever, se é que ainda existiria.
No meio de um verdadeiro turbilhão de pensamentos Dona Eugenia voltou à realidade e analisou se deveria de fato ir até lá. Estava ali tão perto. Daquele local era só chegar até o riacho e seguir andando um pouquinho pela margem. Um caminho que na verdade ela conhecia tão bem. Só não sabia se deveria ir sozinha ou se esperava que alguém de sua família a acompanhasse até lá. Concluiu que talvez seu tempo acabasse sem que um de seus filhos se dispusesse realmente a acompanhá-la. Resolveu ir sozinha mesmo.
Pediu a Deus para não encontrar ninguém que pudesse lhe atrapalhar a empreitada, deu inicio a sua aventura caminhando pela areia fofa e quente da praia. Deveria chegar até o rio. Enquanto ainda dava os primeiros passos, veio-lhe a mente uma conversa que interrompera entre dois de seus filhos. Ela sabia que eles estavam cansados e que pretendiam dividir o problema, Dona Eugenia compreendeu bem rápido que o problema era ela. Falavam sobre revezar sua presença de forma que ela ficasse um tempo na casa de um depois um tempo na casa de outro. Dona Eugenia percebeu que os filhos mudaram de assunto quando ela entrou na sala. Mais uma decepção para a lista de infortúnios de Dona Eugênia.
Ao lembrar-se deste episódio ela apertou seus pequenos passos enquanto analisava que a pior coisa da velhice na verdade era a droga da doença do corpo. Dona Eugenia nem imaginava que há muito sua mente já dava sinais de enorme perturbação. Todos se preocupavam pela falta de senso que Dona Eugenia vinha demonstrando há meses, e o pior é que ela piorava a cada dia. Só Dona Eugenia não sabia, mas estava senil.
- Eu ‘gostava’ mesmo era de dar um mergulho nessa água agora mesmo! De roupa e tudo, pois que nado melhor que todos eles juntos! Falava em voz alta enquanto andava com dificuldade pela areia fofa e quente que queimava a pele fininha de seus pés. Ela seguia rapidamente e se enroscando na vegetação que denunciava a aproximação do mangue e do rio. Por várias vezes, quase caiu. Não sem esforço, mas em pouco tempo, chegou à beira pequeno riacho de águas transparentes e mansas.
Embrenhou-se pelo caminho a beira do rio que na margem oposta, um pouco mais a frente era contornado por um enorme coqueiral. Andou até chegar ao local onde deveria haver um pequeno portão e parou a olhar para dentro da propriedade que um dia lhe servira como lar. Mais de 60 anos depois, ela estava ali e sentia-se exaurida, extasiada.  
Como naquele dia tão distante pelo tempo em que confirmaram a morte de seu pai, ela estava sozinha. Só, como somente ela sabia ser.
 Hoje velhinha em frente aos escombros do que um dia fora sua casa, Dona Eugenia lembrou-se de que quando Dona germana foi embora ela chorou quase até secar por dentro.  E lembrou-se de ficar na varanda sem ter coragem para entrar. Depois, não saiu por dias, muitos dias.
Mal sabia ela o que a vida ainda lhe reservava, muito em breve viria o espanhol a tirar-lhe da casa...
Continua...

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Dona Eugenia - Parte 1

Este conto será postado  em capítulos e espero que acompanhem. 
Obrigada, Sandra.
                              
Estava só.
Era a planura e solidão da vida.
Era este o peito varonil do mundo.
E amei o sistema de tua forma reta,
a extensa precisão de teu vazio.

"Pablo Neruda - Canto Geral"

             Conheci Dona Eugenia quando era criança e tenho ótimas recordações dela, morava no fim da minha rua e sua casa era a mais simples de todas. O que mais chamava a minha atenção era o jeito simples e a quantidade de filhos e netos que ela tinha. ‘Seu Olinto’, marido de D. Eugenia era um velhinho aposentado que falava pouco e passava o dia inteiro sentado em um banquinho na frente de sua casa. Quando alguém implicava com sua ociosidade ele ria e dizia: -“Se apoquente não filho, que to trabalhando... Agora sou bancário!” E com um ar maroto apontava o banquinho, seu companheiro fiel de fazer nada o tempo todo.
A casa nem era tão pequena, mas me lembro bem que não tinha forro. De qualquer cômodo em que se estivesse dava para ver o telhado. Era pintada de uma cor que não existia, não era rosa nem cor de terra, e eu não sei definir ainda hoje, que cor era aquela. Tinha um jardim gigante e desorganizado, e no quintal muito varais que estavam sempre cheios de roupas coloridas e de todos os tamanhos denunciando que lá morava uma família realmente numerosa.
De todos os filhos só a caçula estudava e estava na minha classe, minha querida amiga Adélia. Para mim era estranho saber que uma criança podia ter tantos irmãos e sobrinhos sendo que Adélia era bem mais nova que alguns deles. Como filha única eu achava isso tudo incrível e muito legal, pois ao contrário de mim na casa dela havia crianças para brincar o tempo todo.  Não demorou muito para que eu percebesse que brincar era algo que não fazia parte da rotina de Adélia, pois com freqüência ela tinha obrigações que eu nem sonhava que uma criança pudesse ter.
Brinquei muitas vezes naquele quintal e nutri em mim enorme curiosidade acerca daquela família, de seus costumes e sotaque tão diferentes do meu. Adorava os bolos e o delicioso chá gelado que estavam sempre prontos para refrescar-nos nos dias de verão.
Adélia respeitava seus irmãos e vez em quando, um deles lhe dava uns cascudos. Joãozinho ou Daniel lhe compravam os cadernos para escola, roupas quem lhe dava era Mariazinha, a mais velha de suas irmãs, geralmente eram usadas e vinham de uma sobrinha mais velha que ela. Os raros passeios eram possíveis graças a sua irmã Dirce. Uma jovem boazinha e muito bonita que era igualzinha a D. Eugenia em uma foto que estava sobre a televisão. A foto já estava amarelada, mas dava para ver a beleza de D. Eugênia na sua juventude. Com certeza Dirce puxara a ela. 
Quando resolvi contabilizar vi que eram nove os filhos de Dona Eugênia, Adélia era a caçula com dez anos naquela época e três a mais que eu. Contei mais de vinte netos e pelo menos uns quinze bisnetos
Crescemos. Um a um os filhos de Dona Eugenia que ainda eram solteiros foram se casando. Alguns iam ficando com as famílias por ali mesmo, construindo no quintal até não caber mais nada. O jardim foi sumindo aos poucos. Eu fui estudar longe em outra cidade e senti muita falta da minha rua e das pessoas que compartilharam a melhor parte de minha vida, a infância. Adélia também se casou muito cedo pelo que eu soube, ela ‘pegou barriga’ e teve que se casar. Faz muitos anos que não a vejo.
Confesso que através da presença de Dona Eugenia e Adélia em minha vida eu aprendi bem cedo que nem todas as crianças sorriem o tempo todo, assim como nem todos os velhinhos também. Aprendi que presentes de Natal vêm somente para alguns, e mesmo achando que talvez Adélia merecesse mais que eu, Papai Noel sempre pulava a casa dela. A velhice de Dona Eugenia e de ‘Seu’ Olinto me fez perceber ainda muito cedo que as diferenças sociais marcam negativamente a vida das pessoas mais humildes. A falta de estudo e de oportunidades muitas vezes determinam histórias e diluem sonhos. Talvez nem Deus saiba, mas por algum motivo torpe, algumas pessoas nascem para serem tristes.
‘Seu’ Olinto, morreu aos noventa e nove anos revezando seus ossos entre o seu banquinho no portão e o hospital já que seu fígado havia há muito sido consumido pelo álcool. Dona Eugênia vinte anos mais nova parecia ter uma força e uma saúde invejável e seu corpo ao contrário de sua mente, teimou ainda bastante com o tempo.
Dona Eugenia viveu uma vida longa às voltas com sua enorme família e eu acostumei-me a encontrar com ela logo de manhãzinha  quando   saia   para     estudar.  –“Oi menina... Vai pra escola? Eu já vou andar um pouquinho... Dar umas voltas no quarteirão. A mãe tá boa?” Não esperava a resposta e seguia sorrindo e cumprimentando as pessoas que cruzavam seu caminho. Levava consigo um séquito de cães vagabundos e vira-latas. Os seus, os dos vizinhos e os enjeitados do bairro também, de uma forma ou de outra D. Eugenia dava um jeito de alimentar a todos. Parecia que aquela enorme matilha de cachorros infelizes, cuidava de perto daquela aventura diária de um ser já encurvado pelo tempo e pelo peso de suas lembranças. Essa foi sua rotina por anos.
Segundo eu soube um belo dia após muitos anos, ela pode substituir seu passeio diário pelas ruas do bairro por uma maravilhosa caminhada à beira mar. –“Deus que maravilha! Como antigamente. Após tanto tempo, Dona Eugenia pisava novamente no chão de sua terra afundava com gosto os pés na mesma areia e na mesma praia onde havia sido criada no litoral de Pernambuco. Estava de volta. Com lágrimas nos olhos ela sentia uma felicidade imensa.
Uma emoção difícil de explicar, mas na sua idade, ela já havia aprendido que tem coisas que não se explica se sente, e ela já passara há muito do período em que se precisa convencer os outros de alguma coisa. O que ela sentia era algo dela e assim estava satisfeita. Sua emoção ensimesmada lhe bastava.
 Que saudade enorme que ela sentira tantos anos longe de sua pequena vila. Olhava para as casas que continuavam simples, mas que depois de mais de 60 anos, o tempo tão longo havia carimbado em tudo um tom de modernidade. Agora havia carros, fios de telefone e antenas parabólicas, daquelas bem grandes. Mas o básico e fundamental estavam lá intactos: o mar, o céu, os coqueirais, o farol e aquele sol lindo, limpo sem nuvens que ajudava a pintar de verde o mar dos pescadores. Procurou com os olhos no horizonte as pequenas embarcações que como dantes lhe enfeitavam os quadros de sua memória. 
Sentou-se na areia da praia após ter andado algum tempo a chutar a água, sentiu-se como se tivesse novamente vinte anos. Sentou-se na areia extasiada e o fato de estar molhada até as calcinhas após ser atingida por uma onda mais forte não a incomodou. A brisa do mar suave e quente aguçara seus sentidos. Algo estava diferente dentro dela, sentia-se melancólica, e seus olhos se encheram de lágrimas mais uma vez. Parecia-lhe tudo tão vívido que até o cheiro da maresia parecia trazer com ele todos os outros cheiros que estavam presos em sua memória.
Deixou-se ficar por algum tempo ali sentada na areia acompanhando as embarcações que desenhavam a linha do horizonte. Pareciam pequenos pontos sem cor subindo e descendo com balanço frenético do mar. Seu coração saltava-lhe do peito rufando mais forte e descompassado. Tomada por tantas lembranças entregou-se ao passado com prazer. Se eram momentos felizes ou tristes, não importava. Eram seus era a sua história, e ela não se envergonhava ou se arrependia de nada. Sentia saudade apenas, muita saudade, e se pudesse viveria tudo novamente.
Seus olhos já sem brilho e cansados pelo tempo ardiam com a claridade. Mesmo assim, olhava ao longe tentando adivinhar as histórias daqueles pescadores que como seu pai, todos os dias entregavam a vida ao mar. O oceano costumava cobrar caro e roubar par si as vidas e os sonhos de quem não lhe tinha medo. Levava-os para o fundo e por capricho envolvia seus corpos para que adormecessem nas profundezas mais frias e solitárias. Às vezes o mar devolvia, às vezes não. Assim como nunca lhe devolveu seu pai.
Eugenia tinha apenas quatorze anos quando aconteceu, mas ainda hoje aos noventa ela se lembrava de ter ficado ali naquele mesmo ponto da praia. Dias e dias plantada perto da entrada do mangue, a olhar incansavelmente para o oceano, esperando que a embarcação de seu pai retornasse.
 Depois passou muito tempo a esperar que o mar cuspisse os corpos de seu pai e de mais quatro bons homens. O mar não quis, ficou com eles. A morte de seu pai foi sua primeira grande tristeza.
 Mar - Fonte de inspiração e de vida.