sábado, 4 de dezembro de 2010

"Três Vezes Maria"

A todas as mulheres, inclusive as que ainda não nasceram... 
Ela corria para chegar ao ponto antes do microônibus tentando se equilibrar sobre as sandálias. - “Devia ter colocado aquela mais velhinha pelo menos não ficaria saindo do meu pé”. Ai que saco! Qualquer hora eu caio e aí sim fica pior. Como vou trabalhar com um pé quebrado? Nossa, credo, deve doer muito!” Lembrou da irmã sofrendo por bastante tempo. A imagem de sua irmã, sentada no sofá com a perna numa cadeira, reclamando do gesso viera como um alerta de cuidado em sua cabeça. – “Quando voltar encosto essa sandália num canto”.
     De um salto subiu na lotação, e com dificuldade alcançou o último dos degraus da escada. Segurando-se fortemente, procurou com os olhos o motorista, se aquele infeliz prestasse atenção aos passageiros que entram ou saem do coletivo teria visto que Maria lhe lançara o seu olhar mais revoltado. Procurou em sua volta olhares que lhe dessem apoio, talvez se tivesse encontrado algum, teria reclamado em voz alta. Estava brava. Ela nem sequer havia saído dos degraus e aquele homem horrível e sem educação já havia pisado ferozmente no acelerador.
     Estava atrasada. – “Inferno, como está cheio!” Falou em voz baixa. Já haviam andado alguns quarteirões e ela ainda estava em pé próximo a escada de entrada. – “Ainda bem que não preciso fazer aquela viagem todos os dias”. Era diarista e no momento só estava com três casas para faxina por semana. Isso significava também que o dinheiro estava curto e que a dívida no mercadinho estava cada dia maior. – “Pensando bem seria melhor ter que passar por isso todos os dias e levar mais dinheiro para casa”.
     Sentia-se com sono e cansada, naquele momento, um tanto ultrajada também. O homem que entrara um ponto depois do seu, ficava mais próximo a cada movimento mais forte do veículo, Maria começava a sentir a respiração dele em sua nuca e aquilo a estava deixando completamente desconfortável. Mais um solavanco e pronto, estava confirmado: aquele sujeito estava se aproveitando da situação. O canalha esbarrava sem querer a mão em suas nádegas. –“Que imbecil! O que eu faço? Como saio daqui?” Pensou quase em voz alta.
     Fez um movimento estudado tentando abaixar-se e passar entre a senhora gorda a sua esquerda e uma estudante a sua frente, essa por sua vez, carregava uma enorme mochila nas costas. Tão grande que com certeza ocupava o lugar de uma pessoa. Bem, pelo menos o lugar de uma pessoa pequena como Maria.
     Maria não iria permitir que aquele homem nojento se aproveitasse dela, e como não conseguira sair do lugar, decidiu usar o seu famoso pisão no pé. Afinal, talvez tivesse escolhido a sandália certa. O salto era bem fininho e com certeza aquele tarado sentiria dor no local atingido por dias. Como era de se esperar em uma situação destas, ele torceu o nariz e engoliu em seco, mas nem sequer reclamou. Calou-se declarando assim sua culpa. Acostumado a arriscar-se, o sujeito sabia que se falasse algo a coisa se complicaria e ele estaria realmente encrencado, afinal existe um certo “código de conduta” nos coletivos.
     Depois do microônibus ainda viria o trem. Pelo menos lá ela não iria chacoalhar tanto. Estava ficando enjoada e ainda faltavam uns quinze minutos para chegar ao seu destino. Maria começava a suar frio, não se sentia bem e no seu íntimo imaginava com preocupação a próxima etapa de sua viagem que se daria de um extremo ao outro da cidade.
     -“Tenho que melhorar. Talvez no percurso entre o final da lotação e a plataforma. É ao ar livre, e assim talvez quem sabe essa horrível sensação de fraqueza passe”. Pensou enquanto apertava os passos já livre da tortura que havia sido sua viagem até então.
     Desde muito pequena sentia-se incomodada ao ficar em lugares muito cheios e quando estava nas conduções, o que a aturdia, não era só a quantidade, mas a enorme proximidade a que as pessoas se viam obrigadas a estar. Tocando-se, se roçando. Gostaria de escolher quem fosse roçar nela afinal.
     Andara muitos passos, já quase adentrara o trem e ainda sentia-se mal, parecia estar piorando. Maria sabia muito bem o motivo de seu mal estar: estava grávida. Novamente.
    Se não acreditasse que uma criança é sempre um presente divino Maria não estaria sofrendo tanto. Sentia-se culpada por que seu único desejo, desde que soube da gravidez, era não estar grávida. Faria qualquer coisa para não estar grávida. E desejava também que aquela criança não pudesse lhe adivinhar os pensamentos. Havia tomado todos os remédios e feito todas as simpatias que lhe haviam ensinado. Mas dessa vez, não dava certo. Essa criança tinha uma teimosia que já se fazia anunciar.
     Dorival não queria mais nenhum filho. E ameaçou abandoná-la caso engravidasse outra vez. Meu Deus, ela havia tomado tanto cuidado, mas aquele infeliz que ela chamava de marido quando vinha bêbado pra casa... “Aí não tinha jeito! Tinha que ser como ele queria”. Infeliz ele, infeliz ela. –“Porque não tinha ido embora pra casa de sua mãe? Devia ter “pego as crianças e ido embora”.
     Apesar de tudo Maria amava Dorival e estavam juntos há oito anos. E ela sabia muito bem que apesar das bebedeiras, das dificuldades, mesmo sabendo que todas as necessidades que estavam passando eram de certa forma culpa de Dorival. Ela o amava.
     Maria sabia que sem ele, não seria feliz.  Não haveria outro homem para deixá-la tão sem defesas como seu Dori a deixava. Quando chegava por trás passava os braços em volta dela e começava a cheirar seu pescoço... Assim sem aviso. Mas quase todos os dias! -“Eta homem fogoso meus Deus”! Riu-se ao imaginar Dori fazendo o que ele sabia fazer de melhor: amor com ela.
    “Daí olha só o resultado, pensou. “Grávida outra vez”. Neste momento um gosto horrível subiu-lhe a boca. O trem estava tão cheio quanto a lotação. –“Ai meu Deus vou ter que descer aqui mesmo! Onde é que eu estou?” Não havia chegado nem a primeira de doze das estações que percorreria. O suor gelado anunciava a todos a sua volta que algo estava errado. Olhava para fora e só via concreto, o ruído normal de pessoas falando e do trem empurrando o vento no túnel tornava-se ensurdecedor. Empurrou a todos que estavam a sua frente e como pode chegou até a porta.
     Maria perdeu a cor. O mundo de Maria perdeu a cor. Desmaiou no vagão lotado.
Acordou minutos mais tarde num pronto socorro que não tardaram a lhe informar o nome. A enfermeira queria saber se havia alguém a quem ela quisesse avisar, alguém para buscá-la.  E ainda rapidamente para tentar acalmá-la disse-lhe num tom muito feliz: - “Ah! É claro o seu bebê está muito bem viu? Onde você está fazendo o pré-natal? Parece que você precisa se alimentar melhor menina”. Pobre Maria, já não ouvia mais nada, apenas mantinha os olhos fixos na enfermeira que continuava a discorrer sobre todos os cuidados que precisaria tomar de agora em diante.
     Não estava feliz e sabia que já não havia mais como fugir do problema. Perdera o dia de trabalho. Precisava avisar a patroa que estava doente, afinal teria o atestado e deveria ir para casa, foi-lhe recomendado repouso pelo resto do dia. E ainda hoje teria que contar sobre a gravidez para Dorival. Ainda não tivera coragem.
     Sim. Era isso, iria para casa e aproveitaria o fato de que neste horário Dorival ainda estaria sóbrio. “Seria a melhor hora para dar a notícia!” E ainda por cima, para piorar as coisas, não tinha dinheiro para passar no açougue e dar conta da mistura. “E agora o que faria de comida?” Pensou aflita, esquecendo-se que esse era de fato o menor de seus problemas.
     Ainda bem que nesse horário as crianças estavam na creche e só as buscaria à tarde. Daria tempo de contar ao marido e ainda controlar a situação. Talvez até fizessem as pazes antes de buscar os pequenos –“Meu Deus não é possível que ele não entenda. Afinal eu não fiz o filho sozinha! Mas ele foi tão claro quando disse que iria embora. E se ele fosse mesmo embora o que ela faria da vida?”. Ela com duas crianças pequenas e mais um na barriga.
     -“Que droga de vida. Porque não me cuidei mais? Homem de merda! Só sabe reclamar! Por que é que ainda fico com ele?” Lembrava-se de todas as brigas que já tivera com Dorival quando engravidou do segundo filho que agora tinha um ano e meio. Por pouco ele não fora embora.
     Às vezes não entendia a si mesma. Como poderia amar um homem assim dessa forma meio maluca? Sua irmã não gostava de Dorival e dizia umas coisas que a deixavam confusa e ela preferia não dar atenção.  Maria era incapaz de enxergar o egoísmo cínico de Dorival e preferia ficar afastada da irmã para não ter que lidar com o que poderia ser verdade.
     Acreditava que no fundo Dorival era gente boa e que a amava também. Afinal ele sabia como agradá-la e acende-la como nenhum outro. Além do que, ela acreditava em sua fidelidade. Ele nunca a havia traído e também nunca batera nela. Seu único defeito era a bebida. Se não bebesse era um santo homem.
    -“Ainda não nasceu o homem que vai encostar um dedo em mim. Não, em mim não! Que não sou besta feito a Aparecida. Oh! mulher tonta! O homem apronta, é o maior galinha da cidade e ainda bate nela. E ela tá lá sempre pronta a perdoar. Ah não, traição não perdôo”. Pensou cheia de si e convencendo-se que seu Dori era diferente.
    -“Não ele não irá embora! Vai brigar, falar, xingar, ameaçar mas no fundo vai ficar comigo e depois agente faz as pazes. E olha só, como já tô grávida mesmo, vamos fazer um amor despreocupado, gostoso”. Sorriu maliciosamente desenhando na mente o corpo nu de seu homem. –“Como é bonito!”
     Estava quase chegando seu coração batia cada vez mais rápido, teve medo de passar mal novamente. –“Acho que vou passar na casada Cleuza antes, tomo lá um café, uma água, jogo um pouco de conversa fora e assim me acalmo”. -“Incrível ter conseguido esconder a barriga tanto tempo”. Já estava de quase cinco meses e ninguém havia notado ainda. Nem mesmo a amiga Cleuza.
    -“Acho que tô muito magra”. Apertava os passos acelerando a caminhada, maldizendo a sandália e a própria vida. Cruzou algumas pessoas no caminho e se perguntou se talvez eles pudessem imaginar o que lhe esperava em casa. Não gostava de discussões e odiava brigar com Dorival. Odiava ainda mais quando brigavam na frente das crianças.
     Pensou nos filhos, pensou na falta de dinheiro, pensou na patroa que ficara a ver navios. Cumprimentou a velhinha da quitanda. –“Pobrezinha essa sim sofre. Já não bastou criar os filhos e agora tem de pelejar com um neto drogado. O infeliz até bate na pobre para roubar o seu dinheiro”. –“Oh vício maldito!”. Pensou em voz alta
     E pensando assim ponderou - “Ainda bem que Dorival só bebia. Ah! Maldita cachaça!”.
     Estava quase na casa da Cleuza. Quando chegou ao portão estranhou a janela aberta, havia coisas espalhadas no quintal, mas não via a amiga. -“Vai ver está nos fundos pendurando roupas no varal.” O quintal de terra, cheio de pequenas plantas fortuitas denunciavam a falta de capricho de Cleuza. –”Se eu tivesse um quintal assim deixava bem bonito” pensou Maria. Observando os brinquedos espalhados e cheios de lama da última chuva revoltou-se. “O mulher relaxada essa minha amiga!” “Vou puxar a orelha dela, assim não ensina nada de bom a essas crianças” Em silêncio sorriu, lembrando-se do jeito moleque de sua amiga mais querida.
     Contornou toda a casa e quando já estava chegando à porta da cozinha estranhou ao ver encostada na parede ao lado do tanque uma bicicleta igualzinha a de Dorival. Seu corpo todo estremeceu. Não era igual, era a bicicleta dele. A idéia que lhe invadiu a mente foi tão terrível que tentou afastá-la, sem sucesso.
     Sentia com o peito, com o coração, mas a mente não se pronunciava. Maria não estava pensando mais. O pânico havia tomado sua alma. –“Será? O que Dorival estaria fazendo ali? Naquele horário?” Teve ímpetos de chamar por Dori ou por Cleuza, bem alto. Não o fez tampouco, o corpo tremia convulsivamente e a voz não lhe saiu. O coração não tinha mais ritmo e parecia que ele lhe batia pelo corpo todo.  
     O coração de Maria havia migrado de seu peito.
     Em sua mente surgiu a imagem de Dorival, seu sorriso, seu jeito de olhar por trás dos cabelos. Veio também a imagem deles dois novinhos, namorando.      -“Ele é meu homem, meu marido. – “Não, não pode ser”...
     E assim, sem que Maria percebesse em sua alma se fez total silêncio. Implantava-se a total ausência de cor, de vida e de razão.
     Com a respiração presa, o mundo havia ficado em silêncio, era como um desmaio novamente. Era o nada. O silêncio denunciava o crime de Dorival.
     Mais um passo... A cozinha em bagunça... Uma lâmina, um gemido. Um grito: -“MARIA!!!” Seus olhos só viam o brilho da lâmina. Nem sequer sabia quem havia gritado. Seu peito brandia com um gemido de dor. O reflexo da luz na lâmina da faca cegou seus olhos. Sentiu uma dor aguda e o cheiro de sangue.
     Sentiu um soco dentro de seu ventre. Um soco tão forte que a tirou do estado de torpor em que havia entrado. Era a primeira vez que aquela criança se mexia. E ao mexer-se salvou sua mãe de uma tragédia quase consumada.
    Maria quedou-se parada na porta da sala olhando fixamente para Dorival e Cleuza. Nus, suados e com os olhos esbugalhados de medo e surpresa.  Maria em pé estática segurando aquela faca que encontrara no caminho. O cheiro de sangue que Maria havia sentido era dela, cortara a mão sem perceber. Cortara-se de dor e tristeza no mesmo momento em que flagrou os carinhos que eram dela no corpo de outra.
     O ódio e o torpor que lhe tirara os sentidos a fez apertar a lâmina da faca na própria mão. Instinto, reflexo impensado. Aplacado pelo movimento brusco daquela criança que trazia no ventre. Sentiu a cumplicidade de uma mãe com seu filho. E nesse momento percebeu o quanto amava aquela criança.
     Dorival não a merecia. Não merecia Maria, nem os filhos que ela havia lhe dado. Muito menos esse que ainda estava em seu ventre.
     No flash desencadeado pela lâmina daquela faca, Maria acordou. Saiu correndo precisava buscar as crianças. Já não havia mais nada para ela ali. Precisava salvar-se e salvar seus filhos
     Sentada num banco da rodoviária Maria fitava seus filhos e sentia-se mais velha, mais madura e mais mãe. Ao lado, poucas sacolas para poucas roupas. Poucos pertences para muitas histórias. Na bagagem muita dor.
     Ela que tanto rejeitara aquela barriga, agora se sentia tranqüila, mais forte, mais gente. E muito mais preparada para enfrentar as dificuldades que com certeza viriam.
   –“Sou muito mulher!” pensou enquanto o ônibus estacionava em sua frente. Ela com seus dois filhos pequenos e aquele que ainda chegaria.
     Ela agora era três vezes mais Maria.

2 comentários:

  1. Sandra! Muito bom este conto. Adorei a forma como você descreveu a situação do ônibus. Dava realmente para se colocar dentro do lugar e perceber o aperto e desconforto.
    A conclusão também foi muito boa.
    Boa sorte com seus textos!

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  2. Sandra, obrigada pela visita ao Dicção. Adorei este espaço e com certeza vou voltar mais vezes. Vou fazer uma leitura mais profunda dos seus textos e depois lhe deixo um parecer. Abraço!

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